segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

O Segredo do Contentamento

 

Na Bíblia, alegria e paz não dependem de circunstâncias externas. E essa é uma das lógicas mais profundas do evangelho, porque revela um tipo de existência que não é natural ao mundo caído, mas é própria da cidadania celeste.

Alegria e paz “não circunstanciais” são realidades de outro Reino. No mundo humano, alegria resulta de algo bom que acontece. Na Bíblia, alegria resulta de algo bom que Deus é, independentemente do que acontece. No mundo humano, paz é ausência de problemas. Na Bíblia, paz  é a presença de Deus dentro do problema. Isso significa que a alegria e a paz bíblicas pertencem ao Reino celestial, não ao reino terrestre.

O salvo, vivendo entre dois reinos, acessa a realidade do Reino eterno enquanto ainda enfrenta a instabilidade do mundo caído.

O mundo caído é instável, por isso emoções dependentes das circunstâncias são inevitavelmente frágeis. As circunstâncias mudam o tempo todo: saúde, finanças, clima emocional familiar, mercado de trabalho, opinião das pessoas, política, segurança, expectativas frustradas. Se a alegria depende disso, a pessoa está emocionalmente sequestrada pela realidade externa. Por isso Jesus diz: “A minha paz vos dou; não como o mundo a dá.” (Jo 14:27), ou seja, a paz do mundo é condicional, a paz de Cristo é estrutural.

O coração que vive no egoísmo não consegue ter alegria estável. O egoísmo gera comparação, medo, ciúme, ansiedade, culpa, insatisfação. A lógica da competição torna a alegria impossível de sustentação. Por quê? Porque a alegria do ego depende: do reconhecimento, da vantagem, da vitória, da admiração dos outros, das circunstâncias favoráveis. Egoísmo é alegria instável.

O altruísmo liberta a alma do domínio das circunstâncias. Aqui entra o ponto central: o altruísmo estabiliza a alma. Por quê? Porque a alma que vive para o outro não depende de vantagem, não depende de elogio, não depende de controle, não depende de resultados, não depende de retorno. Ela ama porque ama. Ela serve porque é livre. Ela se doa porque está cheia. O resultado é uma alegria interior que não é sequestrada por nada externo.

A paz bíblica é fruto da entrega, não da circunstância. Paulo diz: “A paz de Deus guardará o vosso coração.” (Fp 4:7). A paz de Deus guarda a mente como uma sentinela. Como isso acontece? Quando renuncio às minhas exigências, submeto minhas expectativas, confio no caráter de Deus, e alinho minha vida ao altruísmo de Cristo.

É por isso que Paulo pode dizer: “Aprendi a estar contente em toda e qualquer situação.” (Fp 4:11). Não é natural. É aprendido — porque é fruto de transferir a confiança das circunstâncias para Deus.

A alegria verdadeira nasce da presença de Deus, não das circunstâncias. A lógica bíblica é: Alegria = presença de Deus. Por isso, Habacuque se alegra mesmo sem figos, sem produção, sem gado (Hc 3:17–18). Paulo e Silas cantam presos (At 16:25). Jesus fala em “a minha alegria” horas antes da cruz (Jo 15:11). Pedro chama de “alegria indizível” em meio a perseguições (1Pe 1:6–8). Por quê? Porque a alegria do cidadão celeste está no caráter de Deus, não na performance da vida.

A lógica central: o Reino de Deus é alegria e paz independentemente da circunstância. Paulo resume tudo: “O Reino de Deus é justiça, paz e alegria no Espírito Santo.” (Rm 14:17). Se a paz e a alegria dependessem de circunstâncias não seriam do Reino, seriam da terra. Mas como vêm do Espírito, não podem ser interrompidas por nada externo.

A estabilidade moral (altruísmo) cria estabilidade emocional (paz e alegria). Quando o coração se doa, ele se estabiliza. Quando ele tenta se preservar, ele se corrompe. O altruísmo dá estabilidade → a estabilidade gera paz → a paz gera alegria → a alegria revela a presença de Deus. Esse é o fluxo:  AMOR → ENTREGA → ESTABILIDADE → PAZ → ALEGRIA. Cristo vivia assim. Daniel vivia assim. Os apóstolos viviam assim.

Por que alegria e paz não dependem de circunstâncias? Porque alegria e paz não são emoções reativas, respostas químicas, respostas a eventos, produtos da sorte. Elas são estados espirituais, frutos do altruísmo, efeitos da entrega, expressões do Espírito, características da cidadania celeste, e manifestações do Reino de Deus dentro da alma humana. Portanto, a alegria não depende do que acontece, mas de quem habita em mim. A paz não depende das circunstâncias, mas do Reino onde pertenço. E ambas se tornam permanentes quando o altruísmo se torna o princípio da vida.

Paulo diz: “Aprendi a estar contente em toda e qualquer situação.” (Fp 4:11). A palavra “contente” é autárkēs — literalmente: autoestável, autoabastecido, interiormente  ancorado. Mas não significa autonomia egoísta. Significa estabilidade interna que não depende de circunstâncias externas. É o oposto do homem dominado por desejos, medos e comparações.

“Tudo posso naquele que me fortalece.” Aqui está o núcleo: Contentamento = força interior produzida por Cristo, não pelas circunstâncias, ou seja, o segredo do contentamento é depender de Cristo e não do mundo.

Mas isso é só a superfície. Vamos ao mecanismo. O contentamento nasce quando o eu deixa de exigir e passa a doar. O grande bloqueio à paz é o “eu” que exige reconhecimento, controle, poder, vantagem, estabilidade externa, resultados, sucesso.

Esse “eu” é o centro da lógica de Babilônia. Ele nunca se satisfaz. O contentamento bíblico vem quando o eu deixa de ser o centro, o altruísmo se torna o princípio da vida, o coração vive para o outro e para Deus. Isso destrói a raiz das exigências.

O contentamento é fruto da cidadania celeste. Paulo, em Filipenses 3:20, diz: “Nossa cidadania está nos céus.” Meus valores vêm do Céu, minha segurança vem do Céu, minha alegria vem do Céu, minha identidade vem do Céu. Quando não dependo da terra para definir meu valor, posso ter muito ou pouco, estar solto ou preso, estar aplaudido ou rejeitado, e ainda assim manter estabilidade interior.  Paulo escreveu sobre contentamento na prisão — isso já diz tudo.

O contentamento é resultado de kenosis (Filipenses 2:5–8). Kenosis significa esvaziamento do eu. Cristo renunciou à supremacia, se fez servo, se humilhou, viveu em cooperação, amou, serviu. E Paulo diz: “Tende em vós o mesmo sentir que houve em Cristo.” A alma que pratica kenosis não exige controle, não exige direitos, não exige retorno, não exige reconhecimento. E quando o “eu” para de exigir, a paz ocupa o espaço deixado.

O contentamento é fruto do fluxo espiritual: “dando, recebe-se”. Jesus ensinou: “É dando que se recebe” (Atos 20:35), isso significa que quem vive para si → vazia-se; quem vive para o outro → enche-se. Esse é o princípio ontológico da alma humana: o egoísmo esgota; o altruísmo estabiliza.

Paulo, em Filipenses 4, agradece uma oferta dos filipenses e diz que eles experimentarão abundância espiritual justamente porque deram. O contentamento nasce quando o centro de gravidade da vida muda. Enquanto eu dependo de dinheiro, estabilidade, controle, aprovação, circunstâncias, eu nunca terei contentamento. Mas quando Cristo se torna meu centro, minha fonte, meu significado, minha segurança, o coração aprende a dizer “Posso todas as coisas.” Não significa que posso fazer tudo. Significa que posso passar por tudo — porque Cristo me sustenta interiormente.

O contentamento é paz ativa, não resignação passiva, também não é acomodação, letargia, estagnação, conformismo. É firmeza, serenidade, força interior, estabilidade emocional, alegria profunda, confiança decisiva. É o estado daquela alma que está centrada em Cristo, não em circunstâncias.

Podemos resumir em uma frase: o segredo do contentamento é Cristo habitando o coração, substituindo o ego, removendo a necessidade de controle e libertando a alma para amar.

Contentamento é a estabilidade produzida pelo altruísmo da cidadania celeste operando dentro de um ser humano ainda vivendo no mundo caído.

Em forma didática, o tripé do contentamento bíblico é: 1. Identidade vertical; eu pertenço ao Céu → não dependo da terra para validar meu valor. 2. Kenosis prática; eu deixo de exigir → o ego perde o poder de roubar minha paz. 3. Altruísmo ativo; eu vivo para estabilizar outros e Deus estabiliza a mim.

O segredo do contentamento não é riqueza, segurança emocional, circunstâncias favoráveis, ausência de problemas. O segredo é Cristo como centro (Fp 4:13); Cidadania celeste como identidade (Fp 3:20); Kenosis como estilo de vida (Fp 2:5–8); Altruísmo como princípio moral (Fp 4:8–9); Paz como resultado espiritual (Fp 4:7). Contentamento é viver na terra como um cidadão que já pertence ao Céu.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O MISTÉRIO DA REBELIÃO: A NEGAÇÃO DA MORAL DIVINA E O PROJETO SATÂNICO DA AUTONOMIA HUMANA

 

1. Introdução

A origem do mal no universo não é apenas um evento de desobediência, mas uma ruptura ontológica que expõe o conflito entre dois sistemas morais: o do amor absoluto, que sustenta a existência, e o da autonomia absoluta, que nega esse fundamento. A Bíblia revela que Deus é amor (1Jo 4:8), o que significa que o amor é a própria estrutura do ser, a lei que mantém todas as coisas em coesão¹. Quando um ser racional tenta existir fora desse amor, ele se torna contraditório à realidade que o sustenta.

Ellen G. White descreve essa dinâmica com precisão: “O amor próprio destruiu o equilíbrio da mente de Lúcifer; ele não suportava ver o Filho de Deus em posição superior.” (WHITE, 2021, p. 495). Ao romper com o amor, Lúcifer não apenas desobedeceu — ele negou a ontologia divina e inaugurou a lógica da autodefinição, cujo eco histórico é o relativismo moderno. Assim, a pergunta da serpente — “É assim que Deus disse?” (Gn 3:1) — contém o germe da filosofia moderna: a dúvida epistemológica erigida em virtude.

Este estudo parte da hipótese de que o Renascimento e o Iluminismo, embora distintos em forma e propósito, materializam culturalmente o mesmo princípio inaugurado por Satanás: o de que a verdade pode ser redefinida pelo sujeito. Por meio dessa análise, propõe-se que a rebelião satânica é o protótipo metafísico do projeto de autonomia da modernidade — a substituição da lei divina por leis humanas, e da revelação pelo raciocínio autônomo².

¹ Cf. WHITE, 2020, p. 26.  ² Ver também AGOSTINHO, 2012, Livro XIV, cap. 7, p. 579–581.

 

2. A Ruptura com o Amor e a Origem do Ódio

A ontologia cristã ensina que o amor é a condição da existência e a forma suprema da razão. Para Agostinho, “a ordem do amor faz a cidade de Deus, e a desordem do amor faz a cidade dos homens” (AGOSTINHO, 2012, XIV, 7, p. 581). Lúcifer, ao inverter essa ordem, inaugurou a primeira autorreferência do bem — o momento em que a criatura passou a ser medida de si mesma.

White afirma: “Separar-se de Deus é cortar o vínculo da vida.” (WHITE, 2020, p. 38). Ao tentar ser “semelhante ao Altíssimo” (Is 14:14), Satanás rompeu o princípio da interdependência e passou a odiar tudo o que lembrava a ordem do amor — inclusive os seres humanos, criados à imagem de Deus. Esse ódio não é um sentimento transitório, mas uma condição ontológica: o ódio é o resultado lógico de uma mente que rejeitou a Verdade.

Na história do pensamento, essa ruptura se repete em diferentes níveis: na filosofia do sujeito de Descartes, no imperativo autônomo de Kant e no naturalismo moderno. Em todos os casos, há uma transposição da origem da lei — de Deus para o homem. O ódio, portanto, não é apenas teológico; é epistemológico: nasce quando a verdade se torna função do eu³.

³ Cf. KANT, 2003, p. 48.

 

3. O Sistema Alternativo: da Cooperação à Competição

A lei de Deus é a codificação moral do amor; ela não restringe, mas sustenta a liberdade. “Toda violação da lei do amor resulta em ruína.” (WHITE, 2020, p. 26). O sistema satânico substitui a cooperação pela competição, o serviço pelo domínio, e o amor pela autopreservação. Na criação divina, a interdependência é o eixo da vida; na rebelião, a independência é o eixo da destruição.

Pascal observou que “a grandeza do homem consiste em reconhecer que é miserável” (PASCAL, 2005, §434, p. 152). A negação dessa dependência é a semente de toda corrupção moral. Em termos teológicos, o pecado é uma inversão da gravidade moral: o ser que deveria orbitar em torno de Deus tenta transformar-se em centro.

C. S. Lewis expressa a mesma ideia: “A abolição do homem começa quando se separa a moral da verdade transcendente.” (LEWIS, 1943, p. 67). Assim, o sistema alternativo não é um cosmos autônomo, mas um anticosmos, uma simulação da vida cuja energia deriva da negação do amor. O orgulho, ao contrário do amor, é entrópico: consome o que deveria sustentar.

⁴ Cf. WHITE, 2021, p. 494.

 

4. A Tese da Verdade Negociável

A rebelião satânica tem natureza epistemológica: ela surge como negação da verdade enquanto realidade absoluta. No Éden, a serpente questiona a Palavra: “É assim que Deus disse?” (Gn 3:1). A dúvida não busca esclarecimento, mas tenta redefinir o princípio de autoridade. A verdade passa a ser tratada como subjetiva e flexível, dependente do sujeito⁵.

Jesus identifica essa estrutura do engano: “Ele não se firmou na verdade, porque não há verdade nele” (Jo 8:44). Em termos teológicos, a mentira é uma ruptura ontológica — introduz incoerência no ser. White afirma que Satanás apresentou o governo de Deus como arbitrário e a lei como impedimento ao progresso (WHITE, 2021, p. 493). Pascal descreve o paradoxo moderno: “Nada é tão conforme à razão quanto o repúdio à razão” (PASCAL, 2005, §272, p. 89).

O princípio da verdade negociável reaparece no relativismo moral e na filosofia moderna. Ao fazer da consciência fonte da lei, o Iluminismo substituiu a revelação pela autonomia epistemológica. Essa estrutura é a base comum entre o pecado e o racionalismo moderno: ambos propõem emancipação do sujeito pela negação da Verdade transcendente.

⁵ Cf. WHITE, 2021, p. 493; ver Jo 8:44.

 

5. O Ganho Ilusório da Rebelião

O objetivo de Satanás era provar que um ser poderia existir independentemente de Deus, estabelecendo sua própria moralidade: autonomia ontológica, o sonho de ser causa sui⁶. Contudo, como afirma Tomás de Aquino, é impossível que algo seja causa eficiente de si mesmo (*Suma Teológica*, I, q. 2, a. 3).

White descreve: “Ao desejar ser independente de Deus, Lúcifer decaiu; e todo ser que procura a grandeza fora dEle, cai igualmente.” (WHITE, 2021, p. 494). Agostinho chama essa dinâmica de curvatio in se, a vontade que se curva sobre si mesma (AGOSTINHO, 2012, XIV, 13, p. 586). Quando a criatura deixa de amar o bem em Deus e passa a amar a si, a liberdade se transforma em servidão.

Kant, ao tentar fundar a moral na razão pura, ecoou a contradição: “A vontade é lei para si mesma.” (KANT, 2003, p. 48). O sujeito que legisla para si torna-se sua própria prisão. Em síntese, a rebelião de Lúcifer e o projeto iluminista partilham a mesma utopia: liberdade sem dependência, moralidade sem transcendência.

⁶ *Causa sui*: ser que é causa de si mesmo — atributo exclusivo de Deus.

 

6. O Projeto Político do Mal

O mal é também um projeto político. Lúcifer não desejou apenas ser livre, mas governante: “Tu, que enfraquecias as nações!” (Is 14:12). A negação da moral divina precisa de uma ordem social alternativa para se legitimar.

White resume: “Satanás desejava que houvesse um governo sem lei, liberdade sem obediência; e isso é anarquia.” (WHITE, 2021, p. 501). A anarquia aqui é estrutura fundada na negação da Verdade. Sem um bem absoluto, o poder torna-se autolegítimo. Lewis adverte: “O poder de fazer o que se quer é o poder de alguns homens sobre os outros.” (LEWIS, 1943, p. 67).

Historicamente, o projeto manifesta-se em dois extremos: totalitarismos tecno-racionais (Estado absolutizado) e liberalismos relativistas (lei moral dissolvida). Ambos têm a mesma raiz: a negação da soberania divina.

 

7. A Impossibilidade de Alternar o Sistema Divino

A ideia de um universo sustentado por outra moral é contraditória. Deus cria conforme Sua natureza; a lei moral é a forma racional do amor. Alterar o princípio do amor implicaria alterar o próprio ser de Deus. “Toda violação da lei do amor resulta em ruína.” (WHITE, 2020, p. 26).

Plantinga denomina isso de incoerência performativa: negar Deus é negar as condições de possibilidade da moral (PLANTINGA, 2017, p. 125). White descreve o juízo como reequilíbrio da ordem: “O fogo que consome os ímpios é o amor de Deus que, para eles, se torna tormento.” (WHITE, 2021, p. 543). O mal não constrói cosmos; apenas o consome.

 

8. O Projeto Satânico na História: Renascimento e Iluminismo

O Renascimento desloca o centro do sagrado para o humano (séculos XIV–XVI): o antropocentrismo substitui o teocentrismo; a criatura torna-se medida de todas as coisas. A exaltação do gênio humano simboliza o gesto luciferiano de querer ser semelhante ao Altíssimo, sem partilhar Seu caráter.

O Iluminismo (séculos XVII–XVIII) reveste de racionalidade a mesma rebelião. “O homem alcança maioridade quando se serve de seu próprio entendimento.” (KANT, 2011, p. 1). A consciência torna-se tribunal supremo. White percebe: “Satanás tem operado por meio de filosofias e ciências para substituir a lei de Deus pela lei dos homens.” (WHITE, 2021, p. 582). Pascal adverte: “O coração tem razões que a razão desconhece.” (PASCAL, 2005, §277, p. 132).

 

9. Crise Contemporânea e Restauração da Verdade

A autonomia moderna resulta no relativismo contemporâneo. Nietzsche proclama: “Deus está morto.” (NIETZSCHE, 2001, p. 167). Lewis replica: quando o homem mata Deus, mata a si mesmo (LEWIS, 1943, p. 74). Charles Taylor descreve o self autônomo como identidade autorreferente e frágil (TAYLOR, 2011, p. 52).

White alerta: “A anarquia moral será o resultado de rejeitar a lei divina como norma.” (WHITE, 2021, p. 589). A restauração da verdade ocorre em Cristo: “Sem mim nada podeis fazer.” (Jo 15:5). “Deus não pode nos dar felicidade e paz à parte de Si mesmo, porque não há tal coisa.” (LEWIS, 1943, p. 99). O Evangelho restaura ontologicamente a Verdade, reconectando o ser ao Amor.

 

10. Conclusão

O conflito cósmico é um debate moral sobre a estrutura do ser. O amor sustenta o universo; a rebelião tenta substituí-lo pela autonomia. O sistema satânico não propõe alternativa coerente: inverte o eixo da vida e, ao negar o amor, destrói a base do ser. “O trono de Cristo se baseia na justiça e na verdade; o de Satanás, na mentira e na usurpação.” (WHITE, 2021, p. 503).

A história humana demonstra por experiência a falência da tese satânica: a verdade não é negociável. Ao fim, o universo reconhecerá que a vida só é possível sob a lei do amor. A vitória de Cristo é a reintegração da moral à ontologia — a restauração da realidade para a comunhão eterna.

 

Referências

AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 2012. Livro XIV.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol. I. São Paulo: Loyola, 2005.

DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o Esclarecimento? Trad. Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

LEWIS, C. S. A Abolição do Homem. São Paulo: Vida, 1943.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

PLANTINGA, Alvin. Where the Conflict Really Lies: Science, Religion, and Naturalism. Oxford: Oxford University Press, 2017.

TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: A Construção da Identidade Moderna. São Paulo: Loyola, 2011.

WHITE, Ellen G. Educação. 9. ed. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2020.

WHITE, Ellen G. O Desejado de Todas as Nações. 13. ed. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2021.

WHITE, Ellen G. O Grande Conflito. 2. ed. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2021.

WHITE, Ellen G. Patriarcas e Profetas. 10. ed. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2020.

domingo, 28 de setembro de 2025

A simplicidade complexa da santidade

 

Israel estava prestes a atravessar o Jordão e entrar na terra prometida, então, Josué deu uma ordem: “Santifiquem-se, porque amanhã o SENHOR fará maravilhas no meio de vocês” (Js 3:5). Razão dessa ordem é que, semelhantemente como na ocasião do Sinai, quando Deus iria transformar uma multidão de peregrinos em nação constituída, esse era outro momento de transição e de grande manifestação do poder divino. Antes de qualquer intervenção sobrenatural, Deus chama o povo a um preparo espiritual. A santificação aqui incluía práticas de purificação cerimonial (como lavar roupas, abster-se de impurezas rituais, Ex 19:10-15), mas ia além do aspecto externo.

O verbo hebraico qadash significa “separar, consagrar, tornar santo”. A ordem de Josué visava separar o povo das distrações comuns, chamando-os a dedicar-se totalmente a Deus. Ou seja, antes de ver as maravilhas divinas, era necessário alinhar a vida com a vontade do Senhor.

Na lógica bíblica, a santificação é sempre pré-condição da presença manifesta de Deus. Algo semelhante ocorreu:

·   no Sinai: “Santifica o povo hoje e amanhã, e lavem as suas roupas” (Ex 19:10), antes da revelação da lei;

·      no tabernáculo: a glória do Senhor só encheu o santuário após a consagração (Lv 9:6, 23-24);

·    no Novo Testamento: Jesus orou “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade” (Jo 17:17), antes de enviar os discípulos em missão.

A ordem ensina que não há maravilha de Deus sem preparação do coração humano. O povo não poderia confundir o poder divino com magia ou espetáculo: as maravilhas são resposta a um coração consagrado. A santificação é o reconhecimento de que a iniciativa é de Deus, mas a disposição é do homem.

Segue-se que a santificação não é ritual externo, mas entrega interior. Em Hebreus 12:14, o apóstolo Paulo afirma que santificar-se significa negar o eu e promover a paz: “Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor.” A lógica permanece: se desejamos ver a atuação de Deus em nossa vida, devemos nos colocar em estado de consagração, separação do pecado (competição) e dedicação ao serviço divino. Logo, a ordem de Josué significa que a manifestação de Deus é precedida por um chamado à preparação espiritual. A santificação (promoção da paz) é a chave que abre espaço para que as maravilhas de Deus não sejam apenas vistas, mas compreendidas e vividas como parte do Seu plano.

Biblicamente devemos — entender a santificação como paz entre irmãos. O texto mencionado (Hebreus 12:14): “Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” mostra que o autor não separa os dois elementos, mas os coloca lado a lado como realidades interdependentes. A paz com o próximo não é opcional, mas parte integrante da santificação.

Além disso: 1 João 4:20“Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso.” Mateus 5:23-24 — Jesus ordena reconciliar-se com o irmão antes de oferecer a oferta no altar. Romanos 14:19“Busquemos, pois, as coisas que contribuem para a paz e para a edificação de uns para com os outros.”

Os textos acima mostram que não existe santidade autêntica sem reconciliação e amor fraternal.

A santificação é separação para Deus, mas isso não é isolamento individualista; ela se manifesta em relacionamentos restaurados. Se Deus é amor (1Jo 4:8), ser separado para Ele implica refletir Seu caráter de amor, especialmente no trato com os irmãos. O pecado rompeu não só a relação com Deus, mas também com o próximo (Gn 3:12; 4:8). Logo, santificação implica reconstrução da paz.

Seguem alguns exemplos bíblicos sobre o entendimento da lógica da santificação: Moisés no Sinai: após adorar a Deus, ele intercede pelo povo (Êx 32:30-32). A santificação de Moisés se expressa em amor ao próximo. O tabernáculo: o culto incluía ofertas de paz (shelamim), símbolo da comunhão restaurada entre Deus, ofertante e comunidade (Lv 3). Na Santa Ceia, que simboliza oferta pacífica, ocorre a restauração da harmonia com Deus e com o próximo: é o Céu promovendo santificação e insistindo conosco para abraçá-la. Jesus: em João 17, Ele ora pela santificação dos discípulos (“Santifica-os na verdade”), e logo depois pede pela unidade entre eles (“para que sejam um”).

Podemos dizer que santificação não é apenas vertical (com Deus), mas também horizontal (com os irmãos). Buscar pureza pessoal sem cultivar paz é uma santificação incompleta. A vida cristã só é plena quando a separação do pecado se traduz em comunhão restaurada. Portanto, a paz entre irmãos é parte essencial da santificação. Não se trata de dois caminhos paralelos, mas de uma mesma estrada com duas faces: comunhão com Deus e comunhão com o próximo.

A Simplicidade da Santidade é estar em relacionamento — com Deus e com o próximo. Jesus resumiu em dois mandamentos simples: amar a Deus e amar ao próximo (Mt 22:37-40). João reafirma: “Quem ama é nascido de Deus e conhece a Deus” (1Jo 4:7). Ou seja, o fundamento da santidade é claro: relacionar-se corretamente.

A Complexidade da Santidade se mostra porque relacionamentos são dinâmicos: exigem diálogo, perdão, paciência, reconciliação. Exigem ligações múltiplas: cada pessoa está conectada a muitas outras, como numa rede. Um elo rompido afeta toda a estrutura. Há também um custo pessoal: amar não é só sentimento, mas sacrifício (Jo 15:13).  Assim, a santidade envolve processos de amadurecimento, renúncia e constante ajuste nas ligações.

A “Simplicidade Complexa” está na possibilidade de ver a santidade como uma teia viva de relacionamentos: É simples na raiz (um só princípio: amor). É complexa no desdobramento (inúmeros vínculos a serem nutridos e mantidos). Essa é a lógica de Hebreus 12:14: Buscar santificação (ligação com Deus). Buscar paz (ligação com o próximo). Ambos são inseparáveis. A santidade é simples no princípio (amar), mas complexa no vivido (amar em rede, em vínculos concretos).

 

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Nas vésperas do 70º Aniversário do Segundo Templo Adventista em Manaus


Estamos quase no 70º aniversário do templo adventista da Cachoeirinha. Celebramos não apenas a história de um edifício, mas a memória viva da fidelidade de Deus na missão adventista no coração da Amazônia. Setenta anos atrás, este templo foi erguido como fruto de uma ousada campanha evangelística, em uma época em que Manaus tinha apenas um templo adventista. Aqui, em meio ao desafio missionário, no território mais selvagem do país, nasceu um marco que se tornou farol, pedra de memória e testemunho público.

Ao refletirmos sobre o significado deste segundo templo, não podemos deixar de lembrar o episódio do livro de Josué. Após atravessarem milagrosamente o rio Jordão, o Senhor ordenou que fossem erigidas doze pedras como memorial perpétuo (Josué 4:6–7). Essas pedras eram testemunhas silenciosas, mas eloquentes, de que a vitória não viera da força humana, mas do braço poderoso de Deus. Eram pedras que falavam, que ensinavam gerações futuras: “Aqui o Senhor fez maravilhas. Aqui Ele cumpriu a Sua aliança.”

O segundo templo de Manaus cumpre função semelhante. Ele não é apenas tijolo e argamassa; é um Ebenézer amazônico, que proclama: “Até aqui nos ajudou o Senhor”. Foi a partir deste templo que outros onze nasceram, multiplicando a presença adventista na cidade e irradiando fé para todo o setentrião nacional. Assim como as doze pedras representavam as tribos de Israel, o segundo templo se tornou a pedra-matriz da multiplicação da obra de Deus na região.

Curiosamente, este templo também compartilha outro traço com o altar erguido por Josué: ambos trazem a Lei de Deus escrita diante do povo. Em Josué 8:32 lemos que a Lei foi escrita sobre as pedras, tornando-se testemunho público da aliança. Aqui, em Manaus, a fachada do segundo templo ostenta igualmente a Lei do Senhor, não como ornamento, mas como proclamação perene de que a verdadeira vitória só permanece quando enraizada na fidelidade à aliança. É como se Deus tivesse querido gravar na memória do povo e também nas paredes da cidade a lembrança de que Sua lei é eterna e Sua aliança, inquebrantável.

Não é de se estranhar, portanto, que tantas tentativas de derrubar ou modernizar este templo tenham fracassado. Modernizar não é pecado; mas apagar um memorial seria empobrecer a memória espiritual de uma igreja levantada para encher o mundo com a glória de Yahweh. E parece que a mão providencial de Deus tem zelado para que este edifício permaneça. Líderes que se levantaram contra sua preservação não permaneceram em seus cargos, como se o próprio curso da missão tivesse defendido este monumento.

Assim, compreendemos que o segundo templo de Manaus é mais que um edifício antigo. Ele é memorial de uma vitória missionária; é altar pedagógico que ensina às novas gerações; é símbolo da fidelidade de Deus que não deixa Suas promessas caírem por terra. Ele está para nós como as pedras do Jordão estiveram para Israel: lembrando que as conquistas humanas só têm sentido quando precedidas pela renovação da aliança com Deus.

Neste contexto, ao celebrarmos seus 70 anos, somos convidados a renovar também nossa aliança. Lembremos que:

  • O batismo nos introduz na aliança.
  • A confissão e o arrependimento a mantêm a aliança viva.
  • A Ceia do Senhor a renova continuamente da aliança.
  • E a obediência amorosa a concretiza da aliança em nosso viver diário.

Este templo é testemunha dessas verdades. Ele proclama que as grandes vitórias da igreja não são fruto de estratégias humanas, mas da graça e do poder do Senhor. Que cada geração que entrar por estas portas ou passar diante desta fachada veja não apenas um prédio, mas um memorial vivo que aponta para a aliança eterna.

E que ao olharmos para trás, e vermos setenta anos de história, possamos também olhar para frente, e enxergar que o mesmo Deus que abriu o Jordão para Israel e consolidou a missão adventista em Manaus continuará sendo fiel até o fim.

“As pedras clamarão” (Lc 19:40). E este templo, como monumento do céu na terra, continuará clamando às gerações: Deus é fiel à Sua aliança.

Amém.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

O Templo que Fala: Restaurando o Simbolismo Arquitetônico como Ferramenta de Discipulado

 

A Bíblia apresenta um Deus que ensina não apenas por palavras, mas também por símbolos visíveis, concretos e estruturados no espaço. Desde o Éden até a Nova Jerusalém, a revelação divina se expressa tanto em conteúdos quanto em formas e ambientes. Ignorar essa dimensão é empobrecer a pedagogia divina e abrir mão de um recurso poderoso para formar discípulos.


1. O modelo bíblico: arquitetura como revelação

Quando Deus ordenou: “E me farão um santuário, para que Eu habite no meio deles” (Êx 25:8), não deu apenas uma autorização para construção, mas apresentou um modelo detalhado: “Conforme tudo o que eu te mostrar... assim fareis” (Êx 25:9). O autor de Hebreus confirma que os sacerdotes “servem de exemplo e sombra das coisas celestiais” (Hb 8:5), mostrando que o arranjo do santuário era pedagógico e profético.

Ezequiel recebeu esta ordem: “Mostra a casa a Israel... e lhes mostrarás a forma da casa... para que guardem todas as suas formas” (Ez 43:10-11). Aqui, contemplar a estrutura do templo era parte do ensino moral e espiritual.

📌 A progressão do pátio ao santíssimo comunicava, em linguagem visual, a jornada espiritual: sacrifício → purificação → vida consagrada → comunhão plena.


2. A continuidade histórica: paredes que pregam

A igreja, ao longo dos séculos, preservou essa lógica. As basílicas conduziam o fiel do átrio (símbolo do mundo exterior) ao altar (símbolo da presença divina). A arquitetura gótica, com suas torres e vitrais, elevava os olhos e o espírito. Até mesmo os reformadores mantiveram disposição simbólica: púlpito central, mesa da ceia visível, batistério em destaque.

“As paredes pregam, e as pedras clamam, quando são postas para lembrar as coisas divinas.( citação indireta)”Agostinho, (Hic sanctus locus est; hic nos congregavit memoria martyris. Non solum ad videndum venimus, sed ad imitandum. (Patrologia Latina, vol. 38, col. 1472-1475)
(“Este é um lugar santo; aqui nos reuniu a memória do mártir. Não viemos apenas para ver, mas para imitar.”).
“A disposição exterior do culto serve para instruir os fiéis e excitar a devoção.”Tomás de Aquino, Suma Teológica II-II, q. 81, a. 7
What they see has a much stronger effect on their minds than what they are told. (
.C. Ryle (2015). “The Upper Room: Biblical Truths For Modern Times”, p.208, Whitaker House)“O olho é um mestre mais fiel do que o ouvido... pois o que entra pelo ouvido passa; o que entra pelo olho fixa-se na memória.”Martinho Lutero; ele escreveu essa carta durante o período de controvérsia iconoclasta em Wittenberg, em 1522, quando movimentos radicais começavam a remover imagens e altares das igrejas. Lutero afirmava que imagens podem ser mantidas como lembrança útil da fé, desde que não sejam veneradas como deuses. Podem servir para lembrar o Evangelho e auxiliar na devoção, se não houver adoração indevida.

 3. A realidade adventista atual: de templos catequéticos a auditórios neutros

Historicamente, os pioneiros adventistas, mesmo sem reproduzir o santuário bíblico literalmente, projetavam seus templos para transmitir verdades centrais:

  • Batistério visível → a entrada na vida cristã é pública e simbólica.
  • Mesa da Ceia em posição de destaque → Cristo como centro da adoração.
  • Púlpito central → a Palavra como autoridade máxima.

No entanto, em muitas congregações contemporâneas, esses elementos têm perdido visibilidade ou foram eliminados. O espaço é projetado para funções múltiplas, assumindo a forma de um auditório genérico. O resultado é que:

  • O visitante não percebe imediatamente o que é mais sagrado ou central na fé.
  • O templo deixa de contar a história da salvação de forma visual.
  • O espaço de culto se assemelha a um centro de convenções ou sala de conferências.

📌 Quando a arquitetura perde intencionalidade teológica, ela deixa de ser um professor silencioso e passa a depender quase exclusivamente da mensagem verbal.

4. O valor pastoral: o templo que discipula

Nicholas Wolterstorff, teólogo reformado, afirma:

“A arquitetura do culto não é neutra: ela molda como imaginamos Deus e como entendemos nosso relacionamento com Ele.”

Ellen G. White aconselhou:

“Tudo no lugar de culto deve ser arranjado de maneira a atrair e elevar o espírito. Deve haver ordem, limpeza e decoro, pois o templo é o lugar onde Deus se encontra com o Seu povo.” (Testemunhos para a Igreja, vol. 5, p. 491).

Um espaço bem projetado reforça o sermão sem palavras, ensina crianças e novos conversos sobre o progresso espiritual e mantém viva a identidade da igreja. Quando o espaço se torna um auditório neutro, ele não distingue o culto de um evento comum, e o discipulado perde um aliado fundamental.

5. O argumento prático: investimento que ensina sempre

Projetar um templo com simbolismo é investir num pregador permanente, que fala todos os dias, a todas as idades, sem custo adicional. É garantir que cada entrada no templo seja um reencontro com a narrativa da salvação. É também comunicar à comunidade que este é um espaço diferente, voltado ao encontro com Deus.

📌 Retirar o simbolismo é confiar apenas na palavra falada.
📌 Preservar ou restaurar o simbolismo é garantir que o espaço físico coopere com a missão.

6. A questão da intencionalidade: acaso ou estratégia espiritual?

Historicamente, a perda de simbolismo nas igrejas pode ser explicada por fatores práticos: redução de custos, influência do minimalismo arquitetônico, busca por espaços “multiuso” e a tendência de copiar modelos de megaigrejas. Muitas vezes, a decisão não é motivada por hostilidade à teologia, mas por questões funcionais ou culturais.

No entanto, a perspectiva espiritual e profética nos alerta para algo mais profundo: Satanás sempre buscou substituir ou diluir os símbolos dados por Deus (Dn 3; Êx 32), e Ellen G. White adverte:

“O inimigo de Deus e do homem tem procurado introduzir suposições que obscurecem a luz e tornam de nenhum efeito a verdade de Deus.” (Evangelismo, p. 363)
“Tudo que possa desviar a mente da verdade presente, Satanás procura promover.” (O Grande Conflito, p. 488)

Se o espaço sagrado é um meio que Deus usa para manter viva a consciência da redenção, sua descaracterização pode ser aproveitada pelo inimigo para enfraquecer a compreensão espiritual da congregação — mesmo que a decisão inicial não tenha sido propositalmente maligna.

📌 O efeito é funcionalmente o mesmo: obliterar das mentes a narrativa visual do plano de salvação.

Conclusão: restaurar a pedagogia do espaço

Restaurar a dimensão simbólica da arquitetura não é luxo; é fidelidade ao padrão divino, continuidade histórica e estratégia pastoral inteligente. Como disse Agostinho, “as paredes pregam” — cabe a nós decidirmos se as deixaremos mudas ou repletas de significado.

“Se retirarmos os símbolos, dependeremos exclusivamente da palavra falada para transmitir toda a teologia. Se mantivermos os símbolos, a própria casa de Deus continuará pregando mesmo quando o púlpito estiver vazio.”

 

 

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Trabalho: Castigo da Queda ou Chave da Elevação?

 

Deus indicou o trabalho como uma bênção para o homem, a fim de ocupar-lhe o espírito, fortalecer o corpo e desenvolver as faculdades. A citação de Ellen G. White (JMM 223.5) nos convida a considerar o trabalho não apenas como uma necessidade física ou econômica, mas como um instrumento espiritual, mental e educativo dado por Deus.

“Trabalho para ocupar o espírito” — o que significa?

No contexto do pensamento bíblico e dos escritos de Ellen White, o termo “espírito” não se refere a algo etéreo, mas à faculdade mais elevada da mente humana — razão, consciência, discernimento moral e capacidade de comunhão com Deus (cf. Educação, p. 17). Assim, ocupar o espírito com o trabalho significa: Direcionar a mente racional para tarefas produtivas. Por óbvio, será necessário cultivar a disciplina mental e a ordem, o que resultará no desenvolvimento de virtudes morais como diligência, perseverança, criatividade e cooperação. Logo, evitar o vazio mental que abre espaço para a tentação e o egoísmo (cf. Ezequiel 16:49 — “ociosidade” foi um dos pecados de Sodoma), representa integrar coração, mente e mãos no serviço a Deus e ao próximo, os dois princípios do reino de Deus.

O pecado afetou profundamente essa função nobre do trabalho. Antes do pecado, o trabalho era alegre, harmonioso e espiritual. Adão lavrava e guardava o jardim (Gênesis 2:15) com satisfação, comunhão e crescimento.

Satisfação é a dimensão da realização pessoal. O trabalho no Éden não era um fardo, mas uma expressão de identidade. Adão foi criado à imagem de Deus, e Deus é trabalhador (Gênesis 1; João 5:17). Logo, ao lavrar e guardar o jardim, Adão expressava o próprio caráter divino, Satisfação estética: contemplar a ordem, a beleza e o resultado direto do seu trabalho.  Satisfação moral: fazer o bem, cumprir um propósito dado por Deus.  Satisfação existencial: sentir-se útil, realizado e participante da criação.

Ellen White diz: “O trabalho foi ordenado ao homem como uma bênção, para ocupar sua mente, fortalecer-lhe o corpo e desenvolver suas faculdades.” (Patriarcas e Profetas, p. 50).

Comunhão é a dimensão relacional e espiritual. O trabalho de Adão não era solitário. Ele lavrava e guardava o jardim diante de Deus, pois estava em comunhão direta com o Criador, que o visitava (Gênesis 3:8); lavrava e guardava o jardim para Deus, uma vez que era como um mordomo, não um dono (Salmo 24:1); lavrava e guardava o jardim com Deus, porque estava como coadministrador do mundo (Gênesis 1:28; 2:19); lavrava e guardava o jardim em favor do futuro próximo preparando o ambiente para Eva, que ainda seria criada (Gênesis 2:18-22). Além disso, havia comunhão com a natureza, pois Adão não dominava com violência, mas cuidava como um servo fiel — guarda e cultivo são atos de amor. Ellen White complementa: “Tudo quanto Deus criou era puro, santo e adaptado às necessidades do homem. Todas as coisas criadas expressavam o pensamento e o amor de Deus.” (Caminho a Cristo, p. 9)

Crescimento é a dimensão do desenvolvimento contínuo. Adão não foi criado perfeito no sentido de não poder melhorar. Ele foi criado sem pecado, mas com potencial de crescimento infinito, especialmente no aspecto, mental: aprendizado dos processos naturais, observação da criação, classificação (como ao nomear os animais (Gênesis 2:19-20). No aspecto moral e espiritual, obediência voluntária, maturidade ética, contemplação de Deus na criação. No aspecto físico, fortalecimento do corpo pela atividade regular e harmônica. No aspecto relacional, desenvolvimento do amor, da cooperação e da sensibilidade, que se intensificaria com a chegada de Eva. Ellen White afirma: “Era desígnio de Deus que o homem encontrasse alegria no trabalho.” (Educação, p. 214). “Adão era um ser nobre, com poderosa capacidade intelectual... havia nobreza em sua expressão, um brilho de santidade.” (História da Redenção, p. 21). A lavoura de Adão era adoração prática. Ao lavrar, ele crescia, comungava com Deus e se alegrava. Isso revela que o trabalho, quando feito em espírito de submissão e propósito, não é uma atividade mundana, mas um ato espiritual.

Uma atividade mundana é qualquer ação guiada por valores seculares, egoístas, sensoriais ou desvinculados de Deus — mesmo que seja uma ação aparentemente “neutra” ou “correta”. É sempre motivada por interesses pessoais acima do bem comum; realizada sem consciência da presença de Deus; visando prazer próprio, status, lucro ou aprovação humana; desprovida de valores espirituais, mesmo se socialmente aceita. Trabalhar honestamente, mas apenas para enriquecer e se tornar superior aos outros — isso é mundano, embora seja “honesto” do ponto de vista jurídico. “Não ameis o mundo, nem o que no mundo há... pois tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, dos olhos e a soberba da vida, não vem do Pai.” (1 João 2:15-16).

Um ato espiritual é qualquer ação, por mais simples que seja orientada pela presença de Deus, pela obediência aos princípios divinos e pelo desejo de glorificá-Lo. É sempre motivado por amor a Deus e ao próximo; realizada com consagração, fé e humildade; tem sentido transcendente, mesmo nas tarefas comuns; promove o crescimento espiritual de quem realiza e de quem recebe. Lavar pratos, estudar, cuidar de uma criança ou varrer uma rua com espírito de serviço, gratidão e reverência — isso é espiritual. “Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus.” (1 Coríntios 10:31). “No mais simples dever cumpre-se o propósito de Deus quando é feito com espírito consagrado.” (Educação, p. 264).

A mesma ação pode ser mundana ou espiritual. O que muda é o coração e a intenção. Comer pode ser um ato mundano (glutonaria, vaidade alimentar) ou um ato espiritual (alimentar-se com gratidão e moderação); trabalhar pode ser mundano (exploração, ego) ou espiritual (mordomia, serviço); falar pode ser mundano (fofoca, vanglória) ou espiritual (encorajamento, testemunho). A diferença entre atividade mundana e ato espiritual não está na aparência, mas na essência.

Depois da queda, o trabalho foi mantido, mas com dor, suor e resistência da natureza (Gênesis 3:17-19). O solo se rebelou, assim como o coração humano.

Contudo, Deus não retirou o trabalho — Ele o ressignificou como remédio. Mesmo em um mundo caído, o trabalho continua sendo um meio de restaurar parcialmente o espírito. Ellen White comenta que o trabalho foi dado para contrariar os efeitos da queda. “O trabalho é uma bênção, não uma maldição. [...] Foi uma salvaguarda contra a tentação e uma fonte de disciplina e desenvolvimento.” (Educação, p. 214).

Após o pecado, as três dimensões (satisfação, comunhão e crescimento) foram enfraquecidas — mas Cristo veio para restaurá-las: dar novo sentido ao trabalho, restaurar a comunhão com Deus e fazer o homem crescer “em sabedoria, estatura e graça” (Lucas 2:52).

Sem o espírito humano ativo, o trabalho tornou-se um fardo. Esse é um ponto crucial. O pecado entorpeceu o espírito humano, tornando o ser humano carnal (Romanos 8:5-7), guiado pelos sentidos e não mais pelo discernimento espiritual. O resultado foi que o trabalho passou a ser visto apenas como sobrevivência, não mais como vocação ou expressão de propósito; tornou-se um fardo (Eclesiastes 2:22-23), muitas vezes mecânico, sem sentido, alienante; em vez de elevar o homem, passou a oprimi-lo, especialmente quando associado à exploração, desigualdade e egoísmo.

Somente com a regeneração espiritual pelo Espírito Santo, o trabalho recupera seu papel formador do caráter e da mente, como nos tempos do Éden.

🌿 Conclusão

O trabalho foi dado para ocupar e elevar o espírito humano. O pecado obscureceu essa função, mas a graça de Deus pode restaurá-la. Fundamento bíblico está em Gênesis 2:15: “Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o lavrar e o guardar.”

A lógica é que Deus criou o homem com faculdades morais e espirituais superiores (o "espírito humano") — razão, consciência, vontade, criatividade. O trabalho foi dado não como castigo, mas como instrumento pedagógico para desenvolver a disciplina mental (organização, foco), a maturidade emocional (paciência, persistência), a altivez moral (serviço, responsabilidade) e a conexão espiritual (cooperação com Deus, adoração prática). “O trabalho é uma bênção, não uma maldição. [...] Ele é essencial para o desenvolvimento físico, mental e moral.” (Educação, p. 214).

 

O pecado obscureceu essa função. Fundamento bíblico está em Gênesis 3:17: “Maldita é a terra por tua causa; com dor comerás dela todos os dias da tua vida.”

A lógica é descrita em Romanos 8:5-8: O pecado inverteu a ordem do ser humano: a carne passou a dominar o espírito. O trabalho perdeu seu caráter formador e espiritual e passou a ser um fardo físico (fadiga, dores, doenças); uma tarefa mecânica (rotina sem sentido); uma busca egoísta (riqueza, status, controle); um instrumento de opressão (exploração do próximo).

O espírito humano obscurecido não mais percebe o valor transcendente do trabalho, vendo-o como castigo ou necessidade de sobrevivência apenas. “O trabalho, em seu estado degradado, tornou-se apenas um meio de subsistência, e não mais de elevação.” (Conselhos aos Professores, p. 230).

No entanto, a graça de Deus pode restaurar essa função. “Porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade.” (Filipenses 2:13); “Quer comais, quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus.” (1 Coríntios 10:31). Pela graça, o ser humano é regenerado no espírito (Efésios 4:23-24). O Espírito Santo restaura o domínio da mente espiritual sobre a carne (Gálatas 5:16-23). O trabalho volta a ser um chamado vocacional (serviço com propósito); um ato de adoração (glorificação a Deus); um meio de crescimento espiritual (santificação diária); uma expressão de amor (mordomia e serviço ao próximo). “Quando Cristo habita no coração, todo trabalho é feito como para Deus. A menor tarefa torna-se nobre, feita com espírito consagrado.” (A Ciência do Bom Viver, p. 474).

Deus criou o trabalho para formar o espírito humano. O pecado inverteu essa ordem e obscureceu o propósito. A graça restaura o espírito e dá novo sentido ao trabalho.

A verdadeira espiritualidade redime o trabalho da banalidade, conferindo-lhe sentido eterno. Como escreveu Paulo: “Quer comais, quer bebais ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus.” (1 Coríntios 10:31).