terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

A visão de mundo dos filhos de Deus


Uma das consequências da interpretação do sonho de Nabucodonozor , o qual é mencionado em Daniel 2, foi a proclamação, pela boca do referido rei, das três virtudes do Deus dos céus: no capítulo 4 do livro de Daniel está a mencionada declaração: “Quão grandes são os Seus sinais, e quão poderosas, as Suas maravilhas! O Seu reino é reino sempiterno, e o Seu domínio, de geração em geração” (Dn 4:3). A frase “Quão grandes são os Seus sinais, e quão poderosas, as Suas maravilhas!” atestam a onisciência e a onipotência de Deus, enquanto a frase “O Seu reino é reino sempiterno, e o Seu domínio, de geração em geração” atestam a Sua onipresença. O cabeça de ouro começa a conhecer Aquele que determina a história. Uma pergunta aparece quando se lê tal relato: por que o Deus do céu se revela ao monarca da Babilônia?

Nabucodonozor era o brilhante imperador a quem Deus entregara o reino de Judá. Os judeus não se tornaram esclarecidos quanto ao seu papel na primeira vinda do Messias, assim, falharam em ser a embaixada do governo celeste entre as nações da Terra. Do seu papel de influenciadores das nações para que estas se submetessem ao governo do Altíssimo, caíram para influenciados pelas nações pagãs, assim que Deus toma um rei icônico para que fosse motivo de cópia de outros reinos, e submete o próprio rei à influência de quatro príncipes israelitas cuja educação religiosa aprimorada seria influência avassaladora sobre um reino universal.

É de suma importância entender o ambiente no qual estava Nabucodonozor. Ele havia conquistado um vasto império e, tal feito o enchia de orgulho. No entanto, Deus o escolheu para ser protagonista no cenário geopolítico da grande controvérsia por uma característica: o rei era justo em muitos aspectos, porém, orgulhoso.

Orgulho tem sido um pecado insuportável porque leva invariavelmente à não dependência de Deus. Através do profeta Ezequiel, Deus explicou as implicações do orgulho: “Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor; lancei-te por terra, diante dos reis te pus, para que te contemplem” (Ez 28:17). Há no texto a demonstração da misericórdia de Deus para com os homens: o anjo rebelde, com o seu orgulho fatal, foi lançado por terra, diante dos reis, para que seja contemplado e seu exemplo seja um estímulo grande contra o orgulho. Especialmente nos que amealham algum poder, o orgulho, ou seja, a independência de Deus, pode se manifestar avassaladora. Somos todos seres humanos caídos, dependentes de Deus para nossa existência. Esta é a visão de mundo dos filhos de Deus. Inteligentemente, deve-se perceber que todos os dons que temos, tudo o que realizamos com esses dons vêm somente de Deus. Portanto, como ousamos ser orgulhosos, jactanciosos ou arrogantes quando, na realidade, a humildade deveria dominar tudo o que fazemos? Essa visão de mundo é diametralmente oposta ao orgulho, ela nos dá a exata perspectiva da mordomia cristã.

Falando de Satanás, o Senhor declara que ele não se firmou na verdade, ou seja, para ele o que lhe fora dado por Deus e que estava à disposição, ele assumiu sendo seu próprio. Ele já foi belo, radiante de luz; sua vida era a aplicação dos princípios da Lei do céu, amor a Deus e amor ao próximo. Mas a Palavra de Deus declara a seu respeito: “Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura” (Ez 28:17). Com este raciocínio, o inimigo de Deus e dos homens tem proclamado que aquilo que temos, nossos talentos e aptidões são nossos e, consequentemente, devemos usá-los para benefício próprio. Tal visão de mundo resultou numa construção social onde a concorrência e a competição levam à sobrevivência dos mais fortes. Essa era a visão de mundo de Nabucodonozor.

 Deus concedeu a Nabucodonosor um segundo sonho. Neste, o rei tinha visto uma grande árvore que alcançava o Céu e um ser celestial ordenando que ela fosse cortada. Somente o toco e as raízes deveriam ser deixados na terra e seriam molhados com o orvalho do Céu. Mas o que deve ter perturbado Nabucodonosor foi a parte do sonho em que o ser celestial disse: “Seja mudado o seu coração, para que não seja mais coração de homem, e seja-lhe dado coração de animal; e passem sobre ele sete tempos” (Dn 4:16). As árvores são comumente usadas na Bíblia como símbolos de reis, nações e impérios (Ez 17; 31; Os 14; Zc 11:1, 2; Lc 23:31). Portanto, a grande árvore era uma representação apropriada de um rei arrogante. O Senhor havia concedido a Nabucodonosor domínio e poder; no entanto, ele persistentemente falhou em reconhecer que tudo o que possuía vinha de Deus. Nabucodonosor não aceitou a mensagem enviada do Céu. Um ano depois de ter sido assim advertido, quando passeava pelo palácio, disse de si para si: “Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei?” […] O Deus do Céu leu o coração do rei e ouviu os seus murmúrios de congratulações próprias. […] “Desceu uma voz do Céu: A ti se diz, ó rei Nabucodonosor: Já passou de ti o reino. Serás expulso de entre os homens, e a tua morada será com os animais do campo; e far-te-ão comer ervas como os bois, e passar-se-ão sete tempos por cima de ti, até que aprendas que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens, e o dá a quem quer. No mesmo instante, se cumpriu a palavra sobre Nabucodonosor” (Dn 4:30-33; Vidas Que Falam [MM 1971], p. 253).

Este episódio é altamente informativo. Nossa inteligência é uma dádiva de Deus. Por essa razão, a inteligência pode ser retirada por Deus. À luz da eternidade, será visto que Deus lida com os homens de acordo com a momentosa questão da obediência ou desobediência (Este Dia Com Deus [MM 1980], p. 350).

Mais uma vez o profeta Daniel é chamado para interpretar ao rei o sonho. Ele não apenas interpretou, mas também indicou uma solução: “Aceita o meu conselho e põe termo, pela justiça, em teus pecados e em tuas iniquidades, usando de misericórdia para com os pobres; e talvez se prolongue a tua tranquilidade” (Dn 4:27). Em outra versão lemos “Renuncia a teus pecados e à tua maldade, pratica a justiça e tem compaixão dos necessitados. Talvez, então, continues a viver em paz”. Compreender estas coisas, isto é, que “a justiça exalta as nações” (Pv 14:34); que “com justiça se estabelece o trono” (Pv 16:12), e “com benignidade” ele se “sustém” (Pv 20:28); reconhecer a ação desses princípios na manifestação de Seu poder que “remove os reis, e estabelece os reis” é compreender a filosofia da história.

Só na Palavra de Deus é que isso é claramente estabelecido. Nela é mostrado a nós que a força tanto das nações quanto dos indivíduos não se encontra nas oportunidades ou facilidades que parecem torná-los invencíveis, nem na grandeza de que tanto se orgulham. Ela é medida pela fidelidade com que eles cumprem o propósito de Deus (Profetas e Reis, p. 502).

O eloquente exemplo do nosso salvador é contrastante com a visão de mundo que estamos acostumados: Humilde, gentil, terno e compassivo, Ele andava fazendo o bem, alimentando os famintos, erguendo o abatido, confortando os tristes. Ninguém que a Ele viesse em busca de auxílio saía desapontado. […] Ele viveu a vida que quer que vivam todos os que creem Nele. Sua comida e bebida era fazer a vontade de Seu Pai. A todos que a Ele vinham buscar ajuda Ele comunicava fé, esperança e vida. Aonde quer que fosse levava bênção. A terna simpatia de nosso Salvador foi despertada em favor da humanidade caída e sofredora. Se vocês desejam ser Seus seguidores, devem cultivar a compaixão e a simpatia. A indiferença para com os infortúnios humanos deve ceder lugar ao vivo interesse pelos sofrimentos dos outros. As viúvas, os órfãos, os enfermos e os que estão a perecer, sempre necessitarão de auxílio. Eis uma oportunidade para proclamar o evangelho – para exaltar Jesus, a esperança e consolação de todos os homens. Quando o sofrimento do corpo é aliviado, abre-se o coração, e vocês podem derramar nele o bálsamo celestial. Se estão olhando para Jesus, e Dele tirando conhecimento, força e graça, podem comunicar a outros a Sua consolação, pois o Consolador está com vocês (Minha Consagração Hoje [MM 1953, 1989], p. 230).

Deus permitiu que Nabucodonosor fosse acometido por uma doença estranha, mas no fim Ele prontamente o restaurou a um estado mental sadio. Curiosamente, tudo mudou quando, ao final dos sete anos preditos pelo profeta, o rei enfermo levantou os olhos para o Céu (Dn 4:34). Numa proclamação pública admitiu sua culpa e a grande misericórdia de Deus em sua restauração” (Ellen G. White, Profetas e Reis, p. 520). Como o caso de Nabucodonosor ilustra, Deus concede uma chance após outra para nos restaurar a um relacionamento justo com Ele. Como Paulo escreveu muitos séculos depois, o Senhor “deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade” (1Tm 2:4). Vemos nessa história um exemplo poderoso dessa realidade.
Por meio de Jesus, foi a misericórdia divina manifesta aos homens; a misericórdia, no entanto, não pôs de parte a justiça. A lei revela os atributos do caráter de Deus, e nem um jota ou til da mesma se podia mudar, para ir ao encontro do homem em seu estado caído. Deus não mudou Sua lei, mas sacrificou-Se a Si mesmo em Cristo, para redenção do homem. “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5:19; O Desejado de Todas as Nações, p. 761, 762). Deve o povo de Deus adquirir experiência mais profunda e mais vasta nos assuntos da religião. Cristo é o nosso exemplo. Se, mediante fé viva e santificada obediência à Palavra de Deus, manifestamos o amor e a graça de Cristo, se demonstramos raciocínio afinado com as providências com que Deus dirige a Sua obra, manifestaremos ao mundo um poder convincente. Não é a posição elevada que nos confere valor aos olhos de Deus. O homem é medido pela sua consagração e fidelidade no cumprimento da vontade divina. Se o remanescente povo de Deus andar perante Ele com humildade e fé, Deus, por meio deles executará Seu eterno propósito, capacitando-os para trabalhar em harmonia para dar ao mundo a verdade tal qual é em Jesus (Testemunhos., v. 9, p. 274).


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

A virtude intraduzível



Os textos anteriormente postados são sempre de autoria da pessoa responsável pelo blog; o texto abaixo abre uma exceção, pois trata-se da tradução de um dos capítulos do livro do Rabino Jonathan Sacks, que comenta sobre Deuteronômio. Achamos que o assunto é de importância capital e, por essa razão, traduzimos da língua inglesa, conforme abaixo:

Na Parashat Re’eh encontramos uma passagem que é a fonte de uma das mais majestosas instituições do judaísmo, o princípio do tzedaka:
Deuteronômio 15:7-11 LEMOS:”7 Quando entre ti houver algum pobre, de teus irmãos, em alguma das tuas portas, na terra que o SENHOR teu Deus te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás a tua mão a teu irmão que for pobre; 8 Antes lhe abrirás de todo a tua mão, e livremente lhe emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade. 9 Guarda-te, que não haja palavra perversa no teu coração, dizendo: Vai-se aproximando o sétimo ano, o ano da remissão; e que o teu olho seja maligno para com teu irmão pobre, e não lhe dês nada; e que ele clame contra ti ao SENHOR, e que haja em ti pecado. 10 Livremente lhe darás, e que o teu coração não seja maligno, quando lhe deres; pois por esta causa te abençoará o SENHOR teu Deus em toda a tua obra, e em tudo o que puseres a tua mão. 11 Pois nunca deixará de haver pobre na terra; pelo que te ordeno, dizendo: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o teu necessitado, e para o teu pobre na tua terra.

Note que a passagem não usa a palavra tzedaka, a despeito do fato que a raiz TZ-D-K é uma palavra chave de Deuteronômio, aparecendo oito vezes. Tampouco está explicitamente tzedaka como tal. Ao invés disso, é sobre shemita, os sete anos nos quais as dívidas são canceladas. Explicaremos abaixo o porquê.

O amplo princípio do tzedaka está no coração da compreensão judaica das mitzvot bein adam lehavero, os deveres que temos com outras pessoas. Isto aparece em passagem chave em Gênesis, o único lugar no qual a Torá explica por que Deus destacou Abraão para ser o pai de uma nova fé:
Gênesis 18:17-19 “17 E disse o SENHOR: Ocultarei eu a Abraão o que faço, 18 Visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e nele serão benditas todas as nações da terra? 19 Porque eu o tenho conhecido, e sei que ele há de ordenar a seus filhos e à sua casa depois dele, para que guardem o caminho do SENHOR, para agir com justiça e juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que acerca dele tem falado”.

O “caminho do Senhor” é definido aqui por duas palavras, tzedaka e mishpat. Ambas são formas de justiça, porém são diferentes em sua lógica. Mishpat significa justiça retributiva. Refere-se ao estado de direito, através do qual as disputas são resolvidas pelo direito e não pelo poder. A lei distingue o inocente do culpado. Estabelece um conjunto de regras, vinculativas para todos, através das quais os membros de uma sociedade agem de forma a perseguir os seus próprios interesses sem infligir os direitos e as liberdades dos outros. Poucas civilizações têm vestidos a lei com maior dignidade do que o judaísmo. É a mais básica instituição de uma sociedade livre. Não é coincidência que no judaísmo, Deus revela-se primariamente na forma de leis, uma vez que o judaísmo está preocupado não somente com a salvação (alma em seu relacionamento com Deus) mas também com a redenção (sociedade como um veículo para a presença divina) uma sociedade governada pela lei é um lugar de mishpat.

Porém, mishpat sozinha não cria uma boa sociedade. Para tal deve-se adicionar tzedaka, a justiça distributiva. Pode-se imaginar uma sociedade que observa meticulosamente o Estado de Direito, mas ainda mantém tanta desigualdade que a riqueza está concentrada nas mãos de poucos, e muitos ficam sem os requisitos básicos para uma existência digna. Pode haver desemprego elevado e pobreza generalizada. Alguns podem viver em palácios, enquanto outros são sem teto. Este não é o tipo de ordem que a Torá contempla. Deve haver justiça não somente em como a lei é aplicada, mas também quanto ao significado da existência- riqueza como uma benção de Deus – deve ser distribuída. Isto é tzedaka.

Por que então é definida tão brevemente na própria Torá? A resposta é que a Torá é um conjunto atemporal de ideais que devem ser realizadas no decorrer do tempo, e nem todos os tempos são os mesmos.

O foco imediato da Torá a partir do Êxodo é a criação de uma sociedade na terra de Israel – a sociedade que realmente emergiu dos dias de Josué até o fim da era bíblica. Sua economia era principalmente agrícola, assim como todas as economias antigas. Portanto, a Torá define em grande detalhe o seu programa de justiça distributiva em termos de ordem agrária.

Havia o sétimo ano, quando os débitos eram cancelados. No sétimo ano de serviço, os israelitas escravos eram libertados. Havia o jubileu no qual as terras ancestrais retornavam aos seus proprietários originais. Havia o “canto do campo” o “molho esquecido” o respigar dos grãos e da colheita do vinho, além dos dízimos no terceiro e sexto anos, os quais eram dados aos pobres. Nessa forma e outras, a Torá estabeleceu a primeira forma da qual no século XX veio a ser conhecida como “estado do bem-estar” – com uma diferença significante. Não há dependência do Estado. Era parte da sociedade, implementada não pelo poder, mas pela responsabilidade moral, não pelo governo, mas pelos indivíduos da sociedade nas comunidades locais. Vemos como isto aconteceu na prática no livro de Ruth, no qual Boaz ajudou duas mulheres em necessidade. Isto era o que uma sociedade de aliança deveria ser. Era uma estrutura excepcionalmente bonita.

Mas, o genial da Torá é que não predica a sua visão para uma única era ou uma ordem econômica em particular. Ao lado das especificidades há uma ampla declaração de ideais atemporais. Esse é o papel dos versos citados acima, que serviram de base para a legislação rabínica sobre tzedaka. Tzedaka refere-se a mais do que presentes a partir de produtos. Inclui presentes em dinheiro, o meio de troca em todas as sociedades avançadas, não importando a sua base econômica. É por isso que nos tempos pós-bíblicos, quando Israel não era uma nação em sua própria terra, e a maioria do seu povo não vivia muito e trabalhava em fazendas, tzedaka assumiu novas formas, como presentes em dinheiro ou comida repartida ou outros recursos. A implementação mudou, mas o princípio permaneceu o mesmo.

Maimonides, em sua halakhic code o Mishneh Torah, faz uma fascinante observação: Nunca vimos ou ouvimos de uma comunidade judaica sem um fundo tzedaka. Nós somos obrigados a ser mais escrupulosos no cumprimento do mandamento do tzedaka do que outros mandamentos positivos porque a tzedaka é o sinal de retidão, a semente de Abraão nosso pai, como é dito, “por isso eu o tenho escolhido, porque instruirá seus filhos...para tzedaka. O trono de Israel e a religião da verdade são mantidos apenas pela tzedak como se diz “em tzedaka serás estabelecido” (Isa.54:14). Israel é redimido unicamente através da tzedaka conforme é dito “Sião será remida com juízo, e os que voltam para ela com tzedaka (justiça)”. (Isa.1:27)...todos os judeus e aqueles agregados a eles são como irmãos, tal como é dito “FILHOS sois do SENHOR vosso Deus” (Deut.14:1), e se um irmão não mostrar misericórdia ao seu irmão, quem então terá misericórdia dele?

Tzedaka era então, em ideal e realidade, constitutivo da vida da comunidade judaica, a ligação moral entre judeu e judeu (embora deva-se notar que a lei judaica também obriga os judeus a dar tzedaka a não judeus sob a rubrica dos caminhos da paz). É fundamental para o conceito de uma sociedade de aliança: sociedade como uma atividade ética é construída em base de responsabilidade mútua.

Até agora, deliberadamente, eu não traduzi a palavra tzedaka. Ela não pode ser traduzida, e isto não é acidental. Civilizações diferem uma da outra em suas estruturas de ideias, até mesmo em suas compreensões mais fundamentais da realidade. Não são maneiras diferentes de dizer ou fazer as mesmas coisas, por assim dizer, cobrindo os mesmos modos básicos de existência. Se procurarmos compreender o que torna uma civilização distinta, o melhor lugar são as palavras intraduzíveis.

Tzedaka não pode ser traduzida porque ela junta dois conceitos que, em outras línguas, são opostos, nominalmente, caridade e justiça. Suponhamos, por exemplo, que eu dê a alguém £100. Ou ele tem direito ou não tem. Se ele tem, então meu ato é uma forma de justiça. Se ele não tem, é um ato de caridade. Em inglês (como com os termos latinos caritas e iustitia) um gesto caridade não pode ser um ato de justiça, nem pode ser um ato de justiça ser descrito como uma caridade. Tzedaka é, entretanto, um termo não usual, porque significa ambos.

A ideia de tzedaka surge da teologia do judaísmo, a qual insiste na diferença entre possessão e propriedade. Finalmente, todas as coisas são de propriedade de Deus, Criador do mundo. O que possuímos não nos pertence – meramente mantemos em confiança para Deus. O claríssimo exemplo é a provisão em Levítico: “Também a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós sois estrangeiros e peregrinos comigo”. (Lev. 25:23).

Se houvesse propriedade absoluta, haveria uma diferença entre justiça (o que somos obrigados a dar aos outros) e caridade (o que damos aos outros por generosidade). O primeiro seria um dever legalmente exequível, o segundo, na melhor das hipóteses, o alerta de benevolência ou simpatia. No judaísmo, entretanto, porque não somos proprietários de nossas posses, mas, meramente guardiões da parte de Deus, estamos unidos por condições de tutela, uma das quais é que compartilhamos parte do que temos com outros em necessidade. Logo, a seguinte lei única: “alguém que não deseja dar tzedaka ou uma apropriada quantidade de tzedaka pode ser compelido a fazê-lo por força de uma corte de justiça judaica”. Caridade é sempre voluntária. Tzedaka é compulsória. Por essa razão, tzedaka não significa caridade. O que pode ser visto como caridade em outro sistema legal é, no judaísmo, um estrito requerimento da lei, executado pelas cortes.

O equivalente mais próximo a tzedaka no Inglês é a frase que veio a existência juntamente com a ideia de um Estado de bem-estar (welfare state), nominalmente, justiça social (significantemente, Friedrich Hayek considerou o conceito de justiça social como incoerente e autocontraditório). Atrás de ambos está a ideia de que ninguém estaria sem os requisitos básicos da existência, e que aqueles que têm mais do que necessitam devem compartilhar algo do supérfluo com os que têm menos. Isto é fundamental para o tipo de sociedade que os israelitas foram encarregados de criar, nominalmente, uma sociedade em que todos têm direito ao básico, a uma vida digna e ao mesmo valor como cidadão na comunidade da aliança sob a soberania de Deus.

Com sua combinação de caridade e justiça, tzedaka é uma instituição única. É profundamente humanitária, mas pode não existir sem o conceito essencialmente religioso da propriedade divina e aliança social. O profeta Jeremias diz do rei Josias, “Julgou a causa do aflito e necessitado; então lhe sucedeu bem; porventura não é isto conhecer-me? diz o SENHOR”. (Jer. 22:16). Conhecer a Deus é agir com justiça e compaixão, reconhecer Sua imagem em outra pessoa, e ouvir o clamor silencioso daqueles em necessidade.