sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

A virtude intraduzível



Os textos anteriormente postados são sempre de autoria da pessoa responsável pelo blog; o texto abaixo abre uma exceção, pois trata-se da tradução de um dos capítulos do livro do Rabino Jonathan Sacks, que comenta sobre Deuteronômio. Achamos que o assunto é de importância capital e, por essa razão, traduzimos da língua inglesa, conforme abaixo:

Na Parashat Re’eh encontramos uma passagem que é a fonte de uma das mais majestosas instituições do judaísmo, o princípio do tzedaka:
Deuteronômio 15:7-11 LEMOS:”7 Quando entre ti houver algum pobre, de teus irmãos, em alguma das tuas portas, na terra que o SENHOR teu Deus te dá, não endurecerás o teu coração, nem fecharás a tua mão a teu irmão que for pobre; 8 Antes lhe abrirás de todo a tua mão, e livremente lhe emprestarás o que lhe falta, quanto baste para a sua necessidade. 9 Guarda-te, que não haja palavra perversa no teu coração, dizendo: Vai-se aproximando o sétimo ano, o ano da remissão; e que o teu olho seja maligno para com teu irmão pobre, e não lhe dês nada; e que ele clame contra ti ao SENHOR, e que haja em ti pecado. 10 Livremente lhe darás, e que o teu coração não seja maligno, quando lhe deres; pois por esta causa te abençoará o SENHOR teu Deus em toda a tua obra, e em tudo o que puseres a tua mão. 11 Pois nunca deixará de haver pobre na terra; pelo que te ordeno, dizendo: Livremente abrirás a tua mão para o teu irmão, para o teu necessitado, e para o teu pobre na tua terra.

Note que a passagem não usa a palavra tzedaka, a despeito do fato que a raiz TZ-D-K é uma palavra chave de Deuteronômio, aparecendo oito vezes. Tampouco está explicitamente tzedaka como tal. Ao invés disso, é sobre shemita, os sete anos nos quais as dívidas são canceladas. Explicaremos abaixo o porquê.

O amplo princípio do tzedaka está no coração da compreensão judaica das mitzvot bein adam lehavero, os deveres que temos com outras pessoas. Isto aparece em passagem chave em Gênesis, o único lugar no qual a Torá explica por que Deus destacou Abraão para ser o pai de uma nova fé:
Gênesis 18:17-19 “17 E disse o SENHOR: Ocultarei eu a Abraão o que faço, 18 Visto que Abraão certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e nele serão benditas todas as nações da terra? 19 Porque eu o tenho conhecido, e sei que ele há de ordenar a seus filhos e à sua casa depois dele, para que guardem o caminho do SENHOR, para agir com justiça e juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que acerca dele tem falado”.

O “caminho do Senhor” é definido aqui por duas palavras, tzedaka e mishpat. Ambas são formas de justiça, porém são diferentes em sua lógica. Mishpat significa justiça retributiva. Refere-se ao estado de direito, através do qual as disputas são resolvidas pelo direito e não pelo poder. A lei distingue o inocente do culpado. Estabelece um conjunto de regras, vinculativas para todos, através das quais os membros de uma sociedade agem de forma a perseguir os seus próprios interesses sem infligir os direitos e as liberdades dos outros. Poucas civilizações têm vestidos a lei com maior dignidade do que o judaísmo. É a mais básica instituição de uma sociedade livre. Não é coincidência que no judaísmo, Deus revela-se primariamente na forma de leis, uma vez que o judaísmo está preocupado não somente com a salvação (alma em seu relacionamento com Deus) mas também com a redenção (sociedade como um veículo para a presença divina) uma sociedade governada pela lei é um lugar de mishpat.

Porém, mishpat sozinha não cria uma boa sociedade. Para tal deve-se adicionar tzedaka, a justiça distributiva. Pode-se imaginar uma sociedade que observa meticulosamente o Estado de Direito, mas ainda mantém tanta desigualdade que a riqueza está concentrada nas mãos de poucos, e muitos ficam sem os requisitos básicos para uma existência digna. Pode haver desemprego elevado e pobreza generalizada. Alguns podem viver em palácios, enquanto outros são sem teto. Este não é o tipo de ordem que a Torá contempla. Deve haver justiça não somente em como a lei é aplicada, mas também quanto ao significado da existência- riqueza como uma benção de Deus – deve ser distribuída. Isto é tzedaka.

Por que então é definida tão brevemente na própria Torá? A resposta é que a Torá é um conjunto atemporal de ideais que devem ser realizadas no decorrer do tempo, e nem todos os tempos são os mesmos.

O foco imediato da Torá a partir do Êxodo é a criação de uma sociedade na terra de Israel – a sociedade que realmente emergiu dos dias de Josué até o fim da era bíblica. Sua economia era principalmente agrícola, assim como todas as economias antigas. Portanto, a Torá define em grande detalhe o seu programa de justiça distributiva em termos de ordem agrária.

Havia o sétimo ano, quando os débitos eram cancelados. No sétimo ano de serviço, os israelitas escravos eram libertados. Havia o jubileu no qual as terras ancestrais retornavam aos seus proprietários originais. Havia o “canto do campo” o “molho esquecido” o respigar dos grãos e da colheita do vinho, além dos dízimos no terceiro e sexto anos, os quais eram dados aos pobres. Nessa forma e outras, a Torá estabeleceu a primeira forma da qual no século XX veio a ser conhecida como “estado do bem-estar” – com uma diferença significante. Não há dependência do Estado. Era parte da sociedade, implementada não pelo poder, mas pela responsabilidade moral, não pelo governo, mas pelos indivíduos da sociedade nas comunidades locais. Vemos como isto aconteceu na prática no livro de Ruth, no qual Boaz ajudou duas mulheres em necessidade. Isto era o que uma sociedade de aliança deveria ser. Era uma estrutura excepcionalmente bonita.

Mas, o genial da Torá é que não predica a sua visão para uma única era ou uma ordem econômica em particular. Ao lado das especificidades há uma ampla declaração de ideais atemporais. Esse é o papel dos versos citados acima, que serviram de base para a legislação rabínica sobre tzedaka. Tzedaka refere-se a mais do que presentes a partir de produtos. Inclui presentes em dinheiro, o meio de troca em todas as sociedades avançadas, não importando a sua base econômica. É por isso que nos tempos pós-bíblicos, quando Israel não era uma nação em sua própria terra, e a maioria do seu povo não vivia muito e trabalhava em fazendas, tzedaka assumiu novas formas, como presentes em dinheiro ou comida repartida ou outros recursos. A implementação mudou, mas o princípio permaneceu o mesmo.

Maimonides, em sua halakhic code o Mishneh Torah, faz uma fascinante observação: Nunca vimos ou ouvimos de uma comunidade judaica sem um fundo tzedaka. Nós somos obrigados a ser mais escrupulosos no cumprimento do mandamento do tzedaka do que outros mandamentos positivos porque a tzedaka é o sinal de retidão, a semente de Abraão nosso pai, como é dito, “por isso eu o tenho escolhido, porque instruirá seus filhos...para tzedaka. O trono de Israel e a religião da verdade são mantidos apenas pela tzedak como se diz “em tzedaka serás estabelecido” (Isa.54:14). Israel é redimido unicamente através da tzedaka conforme é dito “Sião será remida com juízo, e os que voltam para ela com tzedaka (justiça)”. (Isa.1:27)...todos os judeus e aqueles agregados a eles são como irmãos, tal como é dito “FILHOS sois do SENHOR vosso Deus” (Deut.14:1), e se um irmão não mostrar misericórdia ao seu irmão, quem então terá misericórdia dele?

Tzedaka era então, em ideal e realidade, constitutivo da vida da comunidade judaica, a ligação moral entre judeu e judeu (embora deva-se notar que a lei judaica também obriga os judeus a dar tzedaka a não judeus sob a rubrica dos caminhos da paz). É fundamental para o conceito de uma sociedade de aliança: sociedade como uma atividade ética é construída em base de responsabilidade mútua.

Até agora, deliberadamente, eu não traduzi a palavra tzedaka. Ela não pode ser traduzida, e isto não é acidental. Civilizações diferem uma da outra em suas estruturas de ideias, até mesmo em suas compreensões mais fundamentais da realidade. Não são maneiras diferentes de dizer ou fazer as mesmas coisas, por assim dizer, cobrindo os mesmos modos básicos de existência. Se procurarmos compreender o que torna uma civilização distinta, o melhor lugar são as palavras intraduzíveis.

Tzedaka não pode ser traduzida porque ela junta dois conceitos que, em outras línguas, são opostos, nominalmente, caridade e justiça. Suponhamos, por exemplo, que eu dê a alguém £100. Ou ele tem direito ou não tem. Se ele tem, então meu ato é uma forma de justiça. Se ele não tem, é um ato de caridade. Em inglês (como com os termos latinos caritas e iustitia) um gesto caridade não pode ser um ato de justiça, nem pode ser um ato de justiça ser descrito como uma caridade. Tzedaka é, entretanto, um termo não usual, porque significa ambos.

A ideia de tzedaka surge da teologia do judaísmo, a qual insiste na diferença entre possessão e propriedade. Finalmente, todas as coisas são de propriedade de Deus, Criador do mundo. O que possuímos não nos pertence – meramente mantemos em confiança para Deus. O claríssimo exemplo é a provisão em Levítico: “Também a terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós sois estrangeiros e peregrinos comigo”. (Lev. 25:23).

Se houvesse propriedade absoluta, haveria uma diferença entre justiça (o que somos obrigados a dar aos outros) e caridade (o que damos aos outros por generosidade). O primeiro seria um dever legalmente exequível, o segundo, na melhor das hipóteses, o alerta de benevolência ou simpatia. No judaísmo, entretanto, porque não somos proprietários de nossas posses, mas, meramente guardiões da parte de Deus, estamos unidos por condições de tutela, uma das quais é que compartilhamos parte do que temos com outros em necessidade. Logo, a seguinte lei única: “alguém que não deseja dar tzedaka ou uma apropriada quantidade de tzedaka pode ser compelido a fazê-lo por força de uma corte de justiça judaica”. Caridade é sempre voluntária. Tzedaka é compulsória. Por essa razão, tzedaka não significa caridade. O que pode ser visto como caridade em outro sistema legal é, no judaísmo, um estrito requerimento da lei, executado pelas cortes.

O equivalente mais próximo a tzedaka no Inglês é a frase que veio a existência juntamente com a ideia de um Estado de bem-estar (welfare state), nominalmente, justiça social (significantemente, Friedrich Hayek considerou o conceito de justiça social como incoerente e autocontraditório). Atrás de ambos está a ideia de que ninguém estaria sem os requisitos básicos da existência, e que aqueles que têm mais do que necessitam devem compartilhar algo do supérfluo com os que têm menos. Isto é fundamental para o tipo de sociedade que os israelitas foram encarregados de criar, nominalmente, uma sociedade em que todos têm direito ao básico, a uma vida digna e ao mesmo valor como cidadão na comunidade da aliança sob a soberania de Deus.

Com sua combinação de caridade e justiça, tzedaka é uma instituição única. É profundamente humanitária, mas pode não existir sem o conceito essencialmente religioso da propriedade divina e aliança social. O profeta Jeremias diz do rei Josias, “Julgou a causa do aflito e necessitado; então lhe sucedeu bem; porventura não é isto conhecer-me? diz o SENHOR”. (Jer. 22:16). Conhecer a Deus é agir com justiça e compaixão, reconhecer Sua imagem em outra pessoa, e ouvir o clamor silencioso daqueles em necessidade.

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