terça-feira, 17 de julho de 2018

Orei a Deus entregando-lhe meu futuro


Era o final de uma viagem a Belém do Pará, quando enfrentei uma maratona muito cansativa como candidato ao posto de diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi. Fora uma semana de muita adrenalina e muita tensão, considerando os eventos que ocorreram. Minha candidatura ao referido cargo fora estimulada por um grupo de pessoas lideradas pelo Dr. José Seixas Lourenço, nome muito experimentado e reconhecido como um dos mais importantes lideres da academia amazônica, com incomensurável contribuição ao sistema de ciência e tecnologia regional e nacional. O fato de ter sido estimulado pelo Dr. Lourenço me deu muito ânimo e, deste modo, me lancei na empreitada. Também enfrentei oposição pouco elegante e leal. O que resultou foi minha inclusão numa lista tríplice, encabeçando a referida lista por determinação de uma comissão composta por 4 experts definidos pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação do governo brasileiro.

Era o dia 10 de fevereiro de 2018. Um dia que amanheceu com muito sol. Havia feito arranjos para retornar num voo da Força Aérea. Estava com a sensação do dever cumprido. Assim, cheguei a base aérea de Belém com bastante antecedência. Os voos militares são muito incertos para civis e a antecedência pode dissolver muitos problemas. Depois de confirmado o embarque, despachadas as bagagens, esperava pacientemente a hora da decolagem.

O voo foi autorizado e decolamos com destino a Manaus brindados com um céu muito limpo. A aeronave militar não oferece qualquer conforto, mas a tripulação que comandava o voo era muito solícita. Belém foi diminuindo sob nós e avançamos rumo a Santarém, uma escala necessária para reabastecimento. Éramos uns vinte passageiros. A conversa enchia o ar enquanto o avião ganhava altitude e prosseguíamos ao nosso destino intermediário. Tomei meu tablet e abri um livro que estivera lendo, para concluir seu conteúdo. Todos estavam muito animados e logo as primeiras duas horas do voo passaram e estávamos sobrevoando Santarém. Fizemos um pouso tranquilo.

Após as dinâmicas corriqueiras, estávamos outra vez voando para nosso destino. Nesta etapa também o céu estava limpo e nosso voo transcorreu sem anormalidades. A tripulação buscou maior conforto para os passageiros oferecendo café e a chance para ver a cabine de comando. Eu como sou piloto aviador não quis ir até a cabine, mas quase todos foram. Considerei uma atitude muito positiva da tripulação, uma interação oportuna. Assim, passadas mais duas horas e já estávamos sobre Manaus. A paisagem próxima de Manaus é muito impressiva. Muitos lagos ao longo do caudaloso Amazonas. Os lagos são como fazendas onde os peixes encontram alimento e proteção, usando o rio apenas para mudar de lago. Assim, pode-se ver nas proximidades de Manaus a bondade de Deus disponibilizando lagos e muito peixe.

Manaus é uma bela cidade localizada num dos rios mais bonitos que conheço. O sobrevoo feito pela aeronave militar foi muito diferente daqueles realizados pelos voos comerciais. Da janela apreciamos um panorama completo da orla da cidade a uma altitude reveladora de uma face manauara da qual não tinha conhecimento. A cidade estava banhada pelo sol da tarde e suas cores e contornos estavam à mostra. Ver a face de Manaus por aquele novo ângulo causou-me uma sensação de alegria e de agradecimento por estar vivo e desfrutando daquela cidade tão singular. Ainda voávamos sobre o rio Negro, passando por sobre a majestosa ponte tendo a impressão que a terra crescia ante nossos olhos. A aproximação à cabeceira da pista de pouso foi tranquila e finalmente tocamos no solo. Meu cérebro assinalou aquela experiência e provocou em mim um tipo de emoção muito feliz reconhecendo a benção de Deus por me ter dado uma cidade para morar.

Havia eu participado de um certame para tornar-me o novo diretor do Museu Goeldi. Agora, ao ver minha cidade novamente, estava cheio de dúvidas se seria uma boa estratégia sair de Manaus, a cidade onde vivera muitos e bons momentos. Orei a Deus entregando-lhe meu futuro.

A escolha do Diretor dependia agora da escolha do Ministro pautada na indicação da lista tríplice entregue pela comissão acima referida. Meu nome havia sido o primeiro e, pela lógica da meritocracia, eu deveria assumir a direção do museu. Passaram-se os dias e finalmente saiu a decisão do Ministro. Por força das negociações partidárias, a pessoa que estava em segundo lugar fora a indicada. Ao receber a notícia agradeci a Deus por ter cuidado do meu futuro e me permitido ficar na minha morena cidade.

A história nunca terminará?



Compreendemos o livro de Números no seu todo? É dos cinco livros de Moisés o mais difícil, o mais desafiador. Contém uma extraordinária gama de textos e assuntos. Ele inicia no ponto em que deixamos a história no final do livro do Êxodo. Naquele ponto, o povo tinha deixado o Egito e jornadeado até o monte Sinai. Lá eles receberam a Torah. Lá eles fizeram o bezerro de ouro. Lá eles foram perdoados após a súplica apaixonada de Moisés, e lá eles fizeram o tabernáculo (MISHKAN). Este fora inaugurado no 1º dia do 1º mês no segundo ano (Êx. 40:17). O livro de Números começa um mês depois, no 1º dia do segundo mês do segundo ano (Num.1:1). Após uma prolongada permanência no deserto do Sinai, o povo estava pronto para começar a segunda parte da jornada, do deserto à terra prometida (a primeira foi do Egito ao Sinai).

Porém, o livro de Números não parte do começo da segunda jornada. Há um retardamento na narrativa. Os dez capítulos iniciais não relatam o começo da viagem (Num. 10.33). O que os estava detendo? Ou melhor, o que estava fazendo a história andar mais devagar? Antes de podermos juntar o povo à sua jornada, teremos que ler sobre o censo. Então vem uma descrição do arranjo das tribos ao redor do tabernáculo (Ohel Moed) a tenda da reunião. Há uma longa descrição dos Levitas, suas famílias, e respectivos papeis. Há leis a respeito da pureza do acampamento, leis sobre restituição de roubos, leis sobre uma mulher suspeita de adultério, e o nazireato. Neste espaço excessivo lemos ainda sobre os dons trazidos pelos príncipes das tribos na inauguração do tabernáculo. Então vem mais passagens descrevendo a preparação final da jornada. Somente então a jornada começa. Por que essa longa série de digressões?

Uma característica dos livros de Moisés (Torah) que confundiu os estudiosos bíblicos durante, pelo menos, dois séculos é que eles constituem um único gênero. Eles não são história no senso convencional, um mero relato do que aconteceu. Um excelente exemplo é o livro de Números, o qual silencia sobre quase trinta e oito anos dos quarenta anos no deserto. Os eventos não são descritos na Torah simplesmente porque aconteceram. Eles estão narrados porque ensinam sobre a condição humana sob Deus. A Torah também não é um tipo convencional de livro da lei. Há substantivas similaridades entre certas leis bíblicas e outros códigos antigos tal como o de Hammurabi. Um importante distintivo é que a Torah se move da lei para a narrativa e da narrativa para lei novamente; a narrativa jurídica é interrompida por histórias e, ao mesmo tempo, as histórias são descontinuadas por leis. Ela intercala outros tipos de materiais. No caso de Números, inclui uma lista do censo, um itinerário, alguns casos judiciais reais, relatos de batalhas, uma canção de vitória sobre os  Amorreus, e os oráculos de um não israelita, Balaão. Embora a Torah contenha leis, ela não se assemelha a qualquer código de leis.

Estudiosos bíblicos têm buscado entender o texto desmembrando-o, separando-o em fragmentos menores e tentando entende-los isoladamente. Isto é um erro: é precisamente como não ler um livro. Nós não entendemos uma sinfonia desagregando seus temas musicais. É precisamente o modo como a partitura os une, geralmente com tensão e mudanças de humor, o que constitui a sinfonia como uma unidade artística. Do mesmo modo com a Torah – com pelo menos esta diferença: nós não temos nada comparável a ela, nada nem mesmo na literatura religiosa antiga, nem tampouco com outros livros da Tanakh (Torah são os cinco livros de Moisés, a Tanakh outros livros bíblicos).

Não há nada acidental na mistura entre lei e narrativa na Torah. A propósito, a Torah reflete a compreensão israelita de Deus como a unidade sobre a diversidade. Se tudo o que podemos ver é a diversidade, não a unidade, não compreendemos a Torah como um todo.

A Torah oferece um contraste único com a forma de pensamento que consideramos como distintamente ocidental, cujas origens estão na Grécia antiga. Ela mostra três coisas incomuns: primeiro, inclui filosofia no modo narrativo. Ela ensina a verdade não como um sistema, mas como história. Segundo, ela retrata a lei não como reflexo da vontade ou a sabedoria do legislador, mas tal como a lei emerge na história, como se dissesse: isso é o que deu errado no passado, e isto é como evitar no futuro. Terceiro, ela considera a história em si como um comentário sobre a condição humana. A Torah trata das verdades que emergem através do tempo.

Há grandes diferenças entre antigo Israel e a Grécia antiga. A Grécia antiga procurava a verdade na contemplação da natureza e da razão. A contemplação da natureza deu origem à ciência, a contemplação da razão deu origem à filosofia. O antigo Israel encontrou a verdade na história, nos eventos e no que a Torah nos convida a aprender com eles. Ciência tem a ver com a natureza; judaísmo e, consequentemente, cristianismo, tem a ver com natureza humana. Há uma grande diferença entre os dois.

Natureza não cogita sobre livre arbítrio. Cientistas frequentemente negam que exista livre arbítrio. Mas, a humanidade está estabilizada por sua liberdade. Nós somos o que escolhemos ser. Nenhuma planta escolhe ser hospitaleira. Nenhum peixe escolhe viver na água. Nenhum pavão escolhe ser vaidoso. Humanos fazem escolhas, e neste fato nasce o drama sobre o qual a Torah inteira é um comentário: como pode a liberdade coexistir com a ordem? O drama está montado no palco da história, e se desenrola através de quatro atos, cada um com várias cenas. A forma básica da narrativa é praticamente a mesma em todos os quatro casos. Primeiro Deus cria a ordem. Então as pessoas criam o caos. Terríveis consequências seguem. Deus começa novamente, às vezes profundamente triste, mas nunca perdendo sua fé em uma forma de vida na qual ele colocou sua imagem e à qual Ele deu o dom singular que tornou a humanidade parecida com Deus, ou seja, a liberdade.

O Ato 1 está contado em Genesis 1-11. Nesta versão da história, o assunto é a humanidade como um todo. Deus cria um universo ordenado e molda os seres humanos do pó da terra nos quais ele sopra seu próprio fôlego. Mas, os humanos pecam – Primeiro Adão e Eva, então Cain, depois a geração do dilúvio. Deus traz um dilúvio e recomeça novamente, fazendo uma aliança com Noé. A humanidade ainda não aprendeu a lição. O povo peca novamente, desta vez não por ser menos do que humano (violentos) mas por buscar ser mais que humano, construindo uma torre que encontraria o céu (Gen. 11:1), e por impor uma unidade artificial (uma língua com palavras uniformes) na diversidade humana.

Assim, Deus começa novamente. O Ato 2 está contado em Gênesis 12-50. É a história da família da aliança: Abraão e Sarah e três gerações de descendentes. A nova ordem está baseada na família e na fidelidade, no casamento e no parentesco, no amor e confiança, na educação dos filhos nos caminhos do Senhor, como expressos na caridade e justiça (Gen. 18:19). Mas, isto também começa a falhar. Há uma tensão entre Esaú e Jacob, entre as esposas de Jacob, Leah e Raquel, e entre seus filhos. Dez filhos de Jacob vendem o décimo primeiro, José, como escravo. Isso é uma ofensa contra liberdade, e uma catástrofe segue – não por dilúvio, mas por uma fome; como resultado a família de Jacob vai exilada para o Egito, sendo eventualmente escravizada.

O Ato 3, colocado no livro de Êxodo, diz respeito aos israelitas como uma nação em aliança com Deus. Começa com o resgate dos israelitas do Egito do mesmo modo como Ele resgatou Noé do dilúvio. Sua aliança com eles no monte Sinai é muito mais extensiva do que as duas predecessoras, a primeira com Noé e depois com Abraão. Trata-se de um plano arquitetônico para uma ordem social com base na lei e na justiça, informado pela memória do povo, da forma como eles foram tratados no Egito. Sua sociedade seria diferente. Eles não imporiam aos outros o que lhes fora imposto. Por segurança, não seria abolida a escravidão (isto não aconteceu por trezentos anos), nem poriam fim às guerras (não havia acontecido nenhuma guerra). Mas, envolveria a aceitação pelo povo da soberania de Deus. Quase imediatamente a aliança ficou perto de ser inteiramente danificada, quando os israelitas fizeram o bezerro de ouro, meros quarenta dias após a grande revelação. Deus ameaçou destruir a nação toda, começando novamente a partir de Moisés, do mesmo modo com o fez com Noé e Abraão (Ex. 32:10). Somente o apelo apaixonado de Moisés impediu que acontecesse. Deus, então, instituiu uma nova ordem.

O Ato 4 é invulgarmente longo. Diz respeito a um povo com a divina presença no meio deles. Deus não está mais simplesmente distante como o majestoso criador e interveniente na história. Ele está perto, o Shekhinah, Deus imanente e transcendente: Deus como vizinho. Esta história começa em Êxodo 35, e continua através do livro de Levítico, dominando até os primeiros dez capítulos de Números. Seu símbolo mais tangível é o Tabernáculo no centro do acampamento. O edifício do Tabernáculo ocupa o último terço do livro do Êxodo. O Tabernáculo representa um lar para a divina presença na Terra, e quem tentasse entrar no Tabernáculo tinha que estar puro e santo. As leis da pureza e santidade tomam quase todo o livro de Levítico. Quando o livro de Números inicia, espera-se que os israelitas comecem sua jornada à terra santa. Os primeiros dez capítulos são, portanto, inesperados, e apontam para algo que somente se torna claro mais adiante.

Uma vez que os israelitas estavam para tornar-se um povo livre na terra prometida aos ancestrais, eles necessitariam ser capazes de se auto impor ordem. De outra forma eles iriam meramente repetir os erros já cometidos três vezes: a violência antes do dilúvio, as divisões no seio da família de Abraão, e a fundição do bezerro de ouro. Os primeiros dez capítulos de Números dizem respeito à criação do discernimento da ordem no interior do acampamento.

Essa foi a razão do censo e a detalhada disposição das tribos, e a longa descrição dos levitas, a tribo que mediava entre o povo e a presença divina. Essa também foi a razão das três leis – a respeito da restituição (roubos), do adultério e do nazireato – dirigidas contra as três forças que sempre colocam em perigo a ordem social: roubo, infidelidade e álcool.  Nesses capítulos iniciais, é como se Deus estivesse dizendo aos israelitas: isto é o que ordem deve ser. Cada pessoa tem seu lugar dentro da família, da tribo e da nação. Cada um foi contado pelo censo e cada pessoa tem sua responsabilidade. Há uma ordem na maneira como as tribos estão acampadas ao redor do Tabernáculo, e também há ordem para a forma como procedem quando em jornada. Preservar e proteger esta ordem era imprescindível, porque sem ela ninguém poderia entrar na terra, lutar suas batalhas, e criar uma sociedade justa e livre.

Tragicamente, de acordo como o livro de Números demonstra, vemos que os israelitas não tinham internalizado essa mensagem. Eles reclamavam sobre o alimento. Miriam e Aarão criticaram Moisés. Então veio a catástrofe: o episódio dos espias. O povo desmoralizado, mostrou que não estava ainda pronto para liberdade. Como anteriormente no caso do bezerro de ouro, há caos no acampamento. Novamente Deus cogita destruir a nação e recomeçar com Moisés (Num.14:12). Novamente, somente a poderosa petição de Moisés salva o dia. Deus decide uma vez mais recomeçar, desta vez com a próxima geração e um novo líder. O livro de Deuteronômio é o preludio de Moisés para o ato 5, o qual toma lugar nos dias do sucessor, Josué.

A história israelita é muito estranha. Outra vez os israelitas se separaram: nos dias do primeiro templo quando o reino foi dividido em dois, no período do segundo templo quando fracionado em grupos rivais e seitas, e na era moderna, no início do século XIX, quando se fragmentou em religiosos e seculares na Europa oriental, ortodoxos e outros na Europa ocidental. Tais divisões não foram curadas.

Assim, os israelitas continuam repetindo a história contada cinco vezes na Torah. Deus cria a ordem. Humanos criam o caos. Deus representa a unidade. O povo representa a desunidade. Coisas ruins acontecem; Deus e Israel começam novamente. A história nunca terminará? Uma coisa é certa. Deus não desiste. Nem tampouco cessa de falar a nós através da atemporalidade da Torah, lembrando-nos que o desafio central humano, em todas as eras é que a liberdade pode coexistir com a ordem. Tal situação é possível quando humanos livremente escolhem seguir as leis de Deus, dadas universalmente à humanidade após o dilúvio e em concreto particularmente aos israelitas após o Êxodo.

A alternativa, antiga e moderna, é a regra do poder, na qual, o forte faz como quer e o fraco sofre como pode. Mas, essa não é a liberdade como a Torah entende, nem é também a receita para justiça e compaixão. A Torah é o chamado de Deus para criar a liberdade que honra a ordem e uma ordem social que honra a liberdade humana, para respeitar tanto o que é universal em nossa humanidade compartilhada, como o que é especial na nossa especificidade histórica. O desafio permanece.

Texto baseado no Livro “Números: os anos no deserto” Jonathan Sacks