terça-feira, 18 de setembro de 2018

As time goes by (conforme o tempo passa)


Quando minha mãe completou 80 anos fez uma observação que não esqueci: “a vela está apagando, passou muito rápido”. Agora estou quase chegando aos 70 anos, a sensação que tenho é de que passou muito rápido.

Não imaginava que a velhice chegaria. Chegou. Começo a sentir os seus efeitos quando faço algum esforço que exige dos músculos. Mentalmente não sinto a idade, pois ainda vivo buscando alguns empreendimentos que demandam bastante energia. Porém, terei que pensar, a curto prazo, na minha aposentadoria. Nunca pensei que esse momento chegaria. Chegou. Ainda tenho muita energia e vontade de realizar.

Minha trajetória de vida não obedeceu aos padrões dos jovens da minha geração. A maioria deles estudou medicina, direito ou engenharia. Eu fiz biologia, ciência que naqueles idos ainda engatinhava no Brasil e muito particularmente na região norte. Meu pai estremeceu por causa da minha escolha. Havia feito vestibular para medicina, mas resolvi cursar biologia sem pensar em arrependimento. Depois da graduação fiz o exame de seleção para o mestrado. Passei por uma pesada sabatina; dois dias de provas cobrando conhecimentos de física, química, português, matemática, genética, inglês, biologia. Fui aprovado em primeiro lugar e saí da minha cidade (Belém, Pará) para passar dois anos em Manaus, Amazonas, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia -INPA. Meus planos não contemplavam a permanência em Manaus, mas, a instituição ofereceu uma posição de pesquisador e, após uma luta pessoal resolvi aceitar. Após minha defesa de dissertação no mestrado (aprovado com nota 10 e com louvor e distinção), comecei a buscar o doutorado. Veio uma excelente oportunidade para estudar na Universidade de São Paulo- USP. Passei excelentes quatro anos. Após a defesa da tese doutoral (também aprovado com nota 10 e com louvor e distinção), regressei a Manaus com a sensação de que deveria contribuir na Amazônia (na ocasião não havia ainda 1000 doutores na região) e não em outro lugar, porque não seria eu mais um a praticar estelionato, uma vez que estudei em escolas públicas, portanto, pago pelo povo amazônico, sendo minha obrigação retribuir ao esforço dos contribuintes locais.

Se passaram quase 40 anos desde que retornei do doutorado, e empreendi a construção de uma vida quer como pessoa, quer como profissional. Não tenho nenhum arrependimento em razão do meu investimento na Amazônia. Obtive muitos ganhos pessoais considerando que cresci como pessoa, conquistei respeito dos meus amigos, além de ter experimentado momentos de fortes embates e realizações que forjaram em mim tirocínio e resiliência. O tempo transcorrido foi o grande professor e educador que ensinou lições importantes, aprofundando o polimento, aplicando camadas de conhecimento que, talvez, não estariam tão disponíveis em outra situação.

Adquiri conhecimento religioso muito importante, o qual me proporciona enxergar meus erros e corrigi-los. Cultura religiosa é imprescindível para formação ética e conduta moral. Quanto mais aprendemos sobre Deus, mais vemos nossas incoerências, como é enganoso o coração, percebemos nossa teimosia, nossa insensatez. Percebi que a religião melhora a vida social, proporciona sentir mais o valor de uma vida, das amizades, do grande privilégio da existência nas cidades, do valor da cooperação e principalmente compreender que a sociedade é muito maior que a soma das pessoas.
Profissionalmente, o INPA deu-me muitos privilégios. Pude liderar uma parcela significativa de setores importantes adquirindo visão privilegiada sobre aspectos sensíveis do labor científico. Por estar no INPA, pude servir outras instituições federais como consultor. Uma delas, a Financiadora de Inovação e Pesquisas (FINEP), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação (MCTIC) , deu-me grande oportunidade de conhecer o sistema de Ciência e Tecnologia (C&T) brasileiro. Viajei por todas as regiões do nosso país conhecendo investimentos e sentindo pessoalmente as dificuldades de planejamento, execução e manutenção de projetos científicos e de desenvolvimento. Percebi as diferenças regionais no que tange as percepções de prioridades, a maturidade profissional, capacidade de liderança e especialmente como os governos estaduais enxergam C&T. Agradeço muito à FINEP por esse aprendizado. Talvez poucos tenham tido esse aprimoramento.

No quesito pioneirismo, fui o responsável pela implantação e consolidação do departamento de Entomologia do INPA, auxiliei no primeiro planejamento estratégico institucional quando atuei como assessor especial do diretor do INPA e logo depois como coordenador de Ações Estratégicas, ocasião em que implantei os projetos institucionais que mudaram a administração científica do INPA. Mais tarde atuei como coordenador de Relações Institucionais, sendo em seguida convidado a coordenar toda área de capacitação institucional, onde reestruturei todo o sistema de pós-graduação implantando informatização de procedimentos e atualização das secretarias dos cursos. Após, fui chamado para ajudar na Coordenação de Biodiversidade, uma das quatro diretorias de área resultantes da modernização administrativa institucional que transmudou treze departamentos em quatro grandes setores científicos visando o trabalho em grupos, sendo o maior deles a Coordenação de Biodiversidade, correspondendo a 60% da área de pesquisas do INPA, a qual implantei e consolidei. Passei por muitas comissões importantes de planejamento institucional, mas atualmente estou membro do Conselho Técnico e Científico do INPA (CTC), a instancia consultiva mais alta, cuidando das políticas que norteiam a instituição, minha última contribuição administrativa.

De outro lado, no final dos anos 90 fui cedido ao Ministério do Meio Ambiente, para exercer o cargo de gerente do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular -PROBEM, sendo este programa o responsável pela implantação do Centro de Biotecnologia da Amazônia – CBA. Trabalhei intensamente na construção da base física do CBA, um elegante edifício que deveria desenvolver um polo de bioindústrias, bem como a criação de um ambiente regional para bionegócios, alternativa consistente para o fortalecimento de uma vertente econômica baseada na maior riqueza amazônica, a floresta. Tudo estava planejado para agregação de valores à floresta em pé. Infelizmente, com a mudança política na esfera federal e a entrada de um governo de esquerda, a possibilidade de utilização da riqueza natural tornou-se inviável, pois criaram-se mecanismos para inibir qualquer possibilidade de acesso à biodiversidade, matando iniciativas privadas e estatais. Esse atraso foi causado pela visão nacionalista canhestra, pelo discurso neocomunista que saiu da boca de políticos e acadêmicos da Amazônia e do Brasil, taxando de biopiratas as empresas nacionais e estrangeiras, assim como pesquisadores futuristas que se dispuseram a utilizar os recursos naturais amazônicos, o que poderia ter modificado o mercado e exportado bens de consumo de alto valor ao invés de exportar commodities. Falsos brasileiros impuseram à Amazônia mais 20 anos de subdesenvolvimento e atraso.

Os anos 90 foram de muita atividade. Na companhia de alguns amigos idealistas, fundamos a Fundação Vitória Amazônica – FVA, voltada para educação ambiental, e decidiu-se que seu foco territorial seria a bacia do rio Negro. Éramos um grupo muito especial formado por empresários, cientistas, professores universitários, profissionais liberais e estudantes de graduação e pós-graduação. Logo começaram as atividades e a FVA consolidou-se com auxílio de outras fundações, alcançando bastante respeito local e mesmo internacional. Um dos empreendimentos mais auspiciosos daquele início foi a realização do plano de manejo do Parque Nacional do Jaú, uma área muito valiosa, mas que até então estava apenas no papel. A partir da vivência com o Parque, foi-se tomando consciência da necessidade de modificação da legislação sobre parques e travou-se uma frutífera batalha com as autoridades sobre a manutenção de populações tradicionais dentro dos parques, mas até o momento, pouco progresso pode ser contabilizado. Tive o privilégio de presidir o Conselho da FVA por oito anos. Ali travei conhecimento com vários homens e mulheres importantes no Amazonas, pessoas que me ajudaram a compreender melhor esse tão rico território. Também durante minha passagem pela FVA, foi realizada gestão junto à prefeitura de Manaus, para transformar uma área preservada no bairro do Parque Dez no que hoje se conhece como Parque do Mindú. A FVA ajudou na vinda de uma réplica de um navio viking a Manaus, no período da famosa reunião Rio 92. Nesse barco estavam crianças de muitos países que trouxeram pedras de suas terras para lastrear o navio, mas intencionalmente, essas pedras serviram como matéria prima à construção de um monumento comemorativo à visita do navio a Manaus, o qual está na entrada do Parque do Mindú. Dentro do referido monumento existem capsulas com cartas escritas pelas crianças que estavam no navio, mas também por crianças ao redor do mundo, cujo assunto era a preservação ambiental. Por um período de quase 10 anos a FVA fez cooperativamente a gestão do Parque do Mindú com a Prefeitura de Manaus. Sinto alegria de ver um legado físico que resultou da atuação do grupo que iniciou a FVA.

De volta ao INPA, gostaria de acrescentar que ajudei a realizar algumas mudanças estruturais importantes. No início dos anos 1990, o Dr. José Seixas Lourenço assumiu a direção geral do INPA e, como era do seu feitio, promoveu a mais importante modificação estrutural que a instituição experimentou. Pela primeira vez fora realizado um planejamento estratégico. Era um momento muito alvissareiro, considerando que o Banco Mundial estava patrocinando o Programa Piloto para a Proteção das FlorestasTropicai (PPG-7), com recursos para melhorar infraestruturas de pesquisas no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia- MCT. O INPA fora um dos institutos contemplados com recursos e, consequentemente, iniciaram-se as tratativas para a implantação do Programa do PPG-7. Naquele momento fui chamado a ocupar a chefia do gabinete de implantação do programa, com a tarefa de reorganizar a estrutura de pesquisas, além de inserir o escritório de gestão do referido programa.

Do planejamento estratégico sacou-se a necessidade de criar um novo paradigma para o gerenciamento das pesquisas, criando-se então os Programas de Pesquisas Institucionais – PPI, que deveriam funcionar de forma matricial e multidisciplinar, buscando responder perguntas científicas fundamentais. Assim, os projetos eram pensados para atuação de grupos multidisciplinares de pesquisas, uma inovação que somente algum tempo depois tornou-se como que obrigatório no panorama científico mundial. Não se pensou em exportar esse modelo, mas a percepção da complexidade dos problemas estava demandando da comunidade científica mundial o afastamento da forma disciplinar de fazer pesquisa e a aproximação do desenho multi e transdisciplinar, uma forma mais eficaz de gerar conhecimento. No caso do INPA, participei de forma decisiva para o modelo acima, pois estava como responsável por fazer surgir um novo paradigma. Senti como foram importantes os anos passados na Universidade de São Paulo - USP, em contato com mestres muito sábios que incentivavam a leitura de obras básicas do pensamento humano. Como foi importante estar num ambiente onde se respirava vanguarda, tal qual era a USP nos anos 1980.  No caso do INPA, obviamente, a comunidade científica foi coesa em discutir o modelo e por fim implantá-lo. Para o MCT, o INPA foi a primeira instituição a apresentar uma agenda de pesquisas. Por esse motivo, ficou bem mais fácil conseguir aporte financeiro e discutir prioridades com a área financeira do MCT.

Entre os anos 2010 e 20013, o INPA passa outra vez por nova modificação estrutural e orgânica para alcançar nível mundial em pesquisa científica. Como já explicado acima, as treze Coordenações de Pesquisas existentes foram reagrupadas em quatro coordenações que atuavam como diretorias de áreas. Dentro das coordenações foram alocados grupos de pesquisas que funcionavam como as unidades básicas de labor científico. Essa nova organicidade foi pensada para que a transdisciplinaridade fosse provocada e os resultados pudessem dar à luz trabalhos de maior relevância com níveis de generalizações amplos. Até 2013 trabalhou-se forte para que a mentalidade de grupos fosse cristalizada. O modelo assumido pelo INPA também foi uma inovação para o sistema de gerenciamento científico no Brasil, sendo que o agora Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação- MCTI, tomou o INPA como modelo para outras instituições. Todavia, veio a periódica troca de diretor. A pessoa que assumiu em 2014 não fez uma leitura correta da situação (vale dizer que ele nem conhecia o INPA) e, empreendeu uma gestão completamente sem interesse nas conquistas anteriores. Apenas manteve funcionando o que encontrou sem aportar nenhuma novidade ou consolidar o que estava andando. Findou o seu período de gestão de forma patética solicitando sua exoneração antes da posse do novo diretor, uma forma pouco corajosa de se livrar de um grande problema.

O modelo de pesquisas em grupos não foi também bem compreendido pelos pesquisadores locais. A razão é que a geração atual não fora treinada para a transdisciplinaridade. Preferiram persistir produzindo trabalhos onde as coautorias são pouco buscadas. Atualmente, os grupos apenas existem como mera formalidade; não há procura de parcerias entre próprios membros dos grupos. Perderam-se quatro anos preciosos nos quais poderíamos ter avançado mais na transdisciplinaridade, caso a direção tivesse buscado compreender a essencialidade da organicidade que encontrou.

Não poderia deixar de relatar onze anos vividos na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), entre os anos 2000 e 2011, lecionando no Programa de Pós-graduação em Biotecnologia e na graduação para Escola Superior de Ciências da Saúde.

O Programa de Pós-graduação em Biotecnologia foi pensado por causa do Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), para suprir a necessidade de líderes locais. Na época, o governo federal contratou uma Organização Social (OS) chamada BIOAMAZÔNIA para executar o PROBEM (explicado acima). Naquele então, eu prestava consultoria à OS para ajudar na montagem de cadeias produtivas regionais e, por isso, fui convocado para auxiliar na concepção e implementação do programa de pós-graduação. O lócus preferencial deveria ser a UEA, uma vez que o envolvimento do governo estadual com o CBA precisaria ser promovido. Assim pensado, assim executado. Fiz parte da primeira comissão para admissão de alunos ao programa. Atuei também como docente e como membro do Conselho do programa.

Na graduação fui admitido após um concurso de títulos promovido pelo governo estadual. Minha opção foi a Escola Superior de Ciências da Saúde, onde permaneci por onze anos lecionando Metodologia da Pesquisa Científica para os cursos de Medicina, Odontologia e Enfermagem. O período ali despendido trouxe-me muitos dividendos, principalmente o privilégio de entreter convívio com alunos muito jovens e poder influenciá-los. Alguns alunos, pude verificar, continuaram seus estudos de pós-graduação por causa do que lhes aconselhava. Tal desdobramento é uma recompensa excelente. Modificar pessoas tornando-as melhores é o dever de todo adulto. Porém, o professor pode exercer esse mister com maior amplitude. Na graduação conheci muitos outros professores que se tornaram bons amigos, os quais guardo no lado esquerdo do peito.

Minha caminhada ainda está em processo, pude realizar muitas tarefas importantes até mesmo participar de reuniões internacionais com vários organismos e até em reuniões da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica – OTCA, além de ter participado de cinco missões diplomáticas lideradas pelo Ministério das Relações Exteriores, a países sul-americanos. Nessas ocasiões é inevitável sentir a força de liderança exercido pelo Brasil. Temos uma obrigação com nossos vizinhos. O seu desenvolvimento é essencial para manter essa liderança e o fortalecimento das relações sul-sul. Embora já esteja pensando na aposentadoria, ainda me sinto capaz de oferecer minha ajuda.

Meu futuro ainda está em construção, embora eu tenha consciência do tempo. Estou como a criança que ganha uma boa quantidade de doces e passa a comê-los com sofreguidão. Mas quando se dá conta que está a terminar, passa a saborear um por um sentindo o prazer de cada doce. Assim viverei os anos que me restam.