segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Adoração ou êxtase?


No mundo cristão, no ambiente das igrejas, o conceito de adoração está reduzido a demonstrações de êxtase e misticismo. Pessoas fazem expressões de estado de consciência sobrenatural consentindo num frenesi, geralmente escoltado de música agitada a qual leva a muito movimento e pouca meditação. Sem o referido estado de coisas, os crentes pensam não poderem se aproximar de Deus. Tais manifestações são fanaticamente falsas. Em nenhum momento nos relatos sagrados há menção de êxtase na adoração dos primeiros cristãos, quer da parte dos discípulos ou dos membros da primeira igreja. Então, qual o conceito bíblico de adoração?

O profeta Isaías é a referência para entendermos melhor o assunto. Um dos capítulos mais voltado para adoração é o 58, onde o profeta define inequivocamente o que Jeová espera do seu povo quando está reunido no templo nos sábados: “CLAMA em alta voz, não te detenhas, levanta a tua voz como a trombeta e anuncia ao meu povo a sua transgressão...” Qual é a transgressão do povo? O profeta responde: “que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo e que deixes livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo?  Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres abandonados; e, quando vires o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne? Então romperá a tua luz como a alva, e a tua cura apressadamente brotará, e a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do SENHOR será a tua retaguarda.  Então clamarás, e o SENHOR te responderá; gritarás, e ele dirá: Eis-me aqui. Se tirares do meio de ti o jugo, o estender do dedo, e o falar iniquamente; E se abrires a tua alma ao faminto, e fartares a alma aflita; então a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como o meio-dia. E o SENHOR te guiará continuamente, e fartará a tua alma em lugares áridos, e fortificará os teus ossos; e serás como um jardim regado, e como um manancial, cujas águas nunca faltam”. Ora, se adoração tem a ver com ser ouvido por Deus, e se o que Deus comanda para ser encontrado é o que o profeta declarou, então, por que as igrejas insistem em êxtases?

As declarações de Isaías apelam para uma religião onde os crentes devem cooperar uns com os outros, ou seja, crentes unidos em vontade e ação. Porém, a busca pelo êxtase não atende ao comando da cooperação, uma vez que êxtases são experiencias individuais. Então, como poderão os crentes criar estruturas de cooperação quando estão envolvidos num mundo de vontades individuais?

Há três maneiras nas quais empenhamos pessoas a fazerem o que queremos que façam: 1) Poderemos pagá-las para fazerem, neste caso estamos lançando mão da economia de mercado. 2) Força-las para que façam, todavia usaremos o mundo do poder ou do Estado; em nenhum dos casos, os indivíduos abdicam dos seus interesses e desejos privados. 3) A terceira maneira é trazer os indivíduos a unirem-se em uma aliança, em uma responsabilidade coletiva e fidelidade mútua. Este não é um mundo do eu em busca de seus interesses. É um mundo de um coletivo “nós”, no qual unimos nossa identidade em algo maior que nós, o qual define quem somos e que nos obriga a um conjunto de empreendimentos pelos quais escolhemos livremente estar vinculados. Este é o mundo do pacto, e sobre ele a Bíblia fala.

Voltando ao profeta Isaías, melhor seria compreender o conceito de adoração que há nas suas recomendações, tais como: Que soltes as ligaduras. Entre os judeus, as práticas religiosas tinham se tornado um manto para ocultar a opressão dos fracos, o roubo às viúvas e aos órfãos, e todas as formas de suborno, engano e injustiça (Is 1:17, 23; Os 4:2; Am 2:6; 3:10; 4:1 ; 5:11; 8:4-6; Mq 6:11, 12). O verdadeiro propósito da religião é libertar o ser humano dos fardos do pecado, eliminar a intolerância e a opressão e promover justiça, liberdade e paz. Deus queria que Seus filhos fossem livres, mas os líderes de Israel os estavam convertendo em escravos e mendigos, à semelhança dos líderes religiosos atuais. A verdadeira religião é prática. Sem dúvida, inclui os ritos e as cerimônias da igreja, mas é na atitude perante o próximo que se manifesta a presença ou a ausência da verdadeira religião. Não é tanto uma questão de se abster do alimento quanto o é de compartilhar o alimento com o faminto. A bondade na prática é o único tipo de religião reconhecida no juízo divino (Mt 25:34-46). É interessante perceber que muitas das declarações mais conhecidas dos profetas do Antigo Testamento sobre justiça e injustiça, na realidade, foram feitas no contexto das instruções sobre adoração. Como veremos, a verdadeira adoração não é algo que acontece apenas durante um ritual religioso, mas é também compartilhar do interesse de Deus pelo bem-estar dos outros, buscando elevar os oprimidos e negligenciados a uma condição mais digna e justa.

Em relação ao comportamento religioso do antigo Israel, o profeta Isaías declarou que não estavam andando na verdade. A bondade, a misericórdia e o amor não eram praticados. Enquanto apresentavam uma aparência de tristeza por seus pecados, estavam acariciando o orgulho e a avareza. No próprio momento em que estavam mostrando uma humilhação exterior, exigiam trabalhos forçados de seus subalternos ou empregados. O mesmo se dá hodiernamente com os crentes.

Há uma preocupação que aflige a mente dos crentes, aqueles que são interessados em satisfazer os padrões comandados por Deus. Pelo que vimos acima, o padrão moral na adoração é muito alto, por esse motivo, alguns se desesperam porque a alma humana parece menor e sem possibilidades. A avareza é o nosso conforto, a ajuda ao próximo é o nosso desconforto. Para o crente fiel, essa luta é quase inglória. Por que Deus nos obriga a um padrão para o qual não nos parece fácil alcançar?

A resposta a esse quase paradoxo é que fomos criados à semelhança de Deus. Nesta condição, Ele não nos está comandando a algo improvável. Em Levítico 19:2, Deus diz a Moisés: “Fala a toda a congregação dos filhos de Israel, e dize-lhes: Santos sereis, porque eu, o SENHOR vosso Deus, sou santo”. Na Bíblia, o conceito de santidade é o mesmo do de justiça, ou seja, o santo é o justo, ora, se Deus é justo conosco, manda-nos o sol e a chuva, mantém a natureza trabalhando para manutenção da própria vida, então, as criaturas feitas à Sua semelhança também deverão ser justas, e consequentemente santas.

De outro lado, Deus é um ente relacional, logo, necessita estar em contato com as criaturas. Porém, amigos estão relacionados por graus de semelhanças, significando que pessoas muito diferentes não consentem o estado de comunhão, exatamente por não partilharem os mesmos pressupostos de base. Tal fato leva a interpretações divergentes sobre o mundo, dificultando o companheirismo. Se os homens pensam egoisticamente, mas Deus é um ente de justiça, o relacionamento entre ambos está prejudicado. Assim, a solicitação de Deus quanto a santidade para a humanidade é a condição sine qua para haver relacionamento. Logo, adoração não pode lançar mão do êxtase por tratar-se de uma subjetividade.

O profeta Isaías no capítulo 5, verso 16, diz que “...o SENHOR dos Exércitos será exaltado em juízo; e Deus, o Santo, será santificado em justiça”. Isto é, honrado e vindicado em Seus atos de justiça. Os atos do Senhor Lhe trazem honra e glória diante de todo o universo. Se Deus for submetido a um inquérito sobre os seus atos na condição de rei e administrador do universo, não serão encontrados nenhum ato de injustiça. O povo escolhido deve ter o caráter de Deus. O Israel simbólico, os crentes atuais, perderam de vista o fato de que Deus é santo, portanto, falham em compreender a importância e o significado da justiça. Logo, não conseguem com seus cultos e festas, preenchidos pelo egoísmo, adorar ao Deus santo, mimetizando santidade com êxtase.

A justiça de Deus é, em primeiro lugar, simplesmente parte de quem Ele é – um componente essencial de Seu caráter. “Deus não procede maliciosamente; nem o Todo-Poderoso perverte o juízo” (Jó 34:12). Deus é justo e Se interessa pela justiça – essa é uma razão para adorá-Lo e louvá-Lo.

Em segundo lugar, a justiça de Deus é vista em Seus atos justos e retos em favor de Seu povo e de todos os pobres e oprimidos. Sua justiça jamais é uma mera descrição de Seu caráter. Ao contrário, a Bíblia retrata um Deus que “ouviu o lamento dos aflitos” (Jó 34:28); que age e anseia corrigir os erros tão evidentes no mundo. Em última análise, isso será completamente realizado no juízo final de Deus e em Sua recriação do mundo. Logo, os que o adoram devem trazer diante dele seus atos de justiça, porque quando os profetas explicaram a relação entre adoração e justiça, recomendaram insistentemente outro passo: que o interesse em socorrer os pobres, os oprimidos e os necessitados fosse parte importante da adoração. Isaías 58 torna essa relação evidente.

O mais elevado valor moral não pode ser conseguido sem a perfeição da sociedade. O bem-estar da alma só pode ser obtido depois que o corpo estiver seguro. É absurdo supor que as pessoas possam alcançar alturas espirituais se lhes faltam as necessidades materiais mais básicas. Uma pessoa que sofre fome, sede, calor ou frio, não pode compreender uma ideia, ainda que comunicada por outros, muito menos pode chegar a ela por seu próprio raciocínio. Assim, uma sociedade sadia é a condição prévia da espiritualidade. Isso requer, em primeiro lugar, remover toda a violência do nosso meio, e em segundo, ensinando a todos excelência moral a qual deve produzir um estado social excelente. Uma sociedade baseada na responsabilidade coletiva, ou seja, nós, o povo, sob a soberania de Deus. A boa sociedade depende de indivíduos com elevado senso espiritual. Tal sociedade está baseada na justiça ou equidade, a qual está baseada na memória coletiva e chamado ativo, o qual se dá nas celebrações no templo.