terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Deus revela a si próprio

Uma leitura obrigatória para os cristãos é o livro de Jó. De acordo com informações históricas, é de autoria de Moisés. Foi o primeiro livro escrito de todos os que compõem a Bíblia. Considerando que Moisés é reputado como o profeta mais eminente, pois Deuteronômio 34:10-12 refere-se a ele da seguinte forma: “E nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés, a quem o SENHOR conhecera face a face; nem semelhante em todos os sinais e maravilhas, que o SENHOR o enviou para fazer na terra do Egito, a Faraó, e a todos os seus servos, e a toda a sua terra. E em toda a mão forte, e em todo o grande espanto, que praticou Moisés aos olhos de todo o Israel”, melhor será considerar o que ele escreveu como importante leitura.

Há na compreensão dos teólogos duas maneiras pelas quais Deus revelou a si mesmo: 1) através da criação, onde pode-se verificar em atuação os princípios que embasam Seu governo, ou seja, pode-se ver a lei de Deus em funcionamento. A revelação através da natureza é chamada de natural. No Salmo 19 está descrito como o salmista percebia a revelação de Deus através da criação. 2) a chamada Sagrada Escritura, a Bíblia, onde Deus revela a si próprio falando diretamente ao homem. Esta revelação é chama de especial.

Assim, o primeiro livro escrito por Moisés tem como finalidade introduzir toda a Bíblia, mostrando do ponto de vista do próprio Deus a grande controvérsia iniciado por Satanás, quando ainda se encontrava no céu, mas que tem seu prosseguimento na Terra, como consequência da adesão de adão à proposta de Satanás. Moisés mostra como é a atuação dos protagonistas desse embate cósmico, qual o papel das criaturas especificando a postura humana e sua compreensão desse conflito. Por tais razões, não se pode menosprezar as informações contidas no livro de Jó.

Os diálogos do livro são colocados propositalmente para que sejam esclarecidos ensinamentos capitais e plantadas as ideias que poderão ser úteis para as escolhas humanas.

O primeiro diálogo se dá entre Deus e Satanás. Nele estão as posições de ambos. O assunto introduzido por Deus é a Sua justiça e abnegação. O assunto introduzido por Satanás é a impossibilidade de justiça e abnegação por parte de Deus. Este não pode ser abnegado porque possui poder absoluto. Assim, a solicitação de abnegação às criaturas é um ato de injustiça, e neste ambiente, Jó não suportaria nenhuma prova.

Também não há, segundo Satanás, nenhuma integridade em Jó. Não há nenhum justo. Uma vez que a Terra está submetida ao sistema não abnegado de Satanás, nenhum homem será abnegado e, por conseguinte, Jó serve a Deus por puro egoísmo. Satanás contesta toda estrutura religiosa como capaz de melhorar o homem.

Depois, os diálogos que seguem são os humanos. Os amigos de Jó aparecem e Deus não está mais presente ou fica como que oculto. Os argumentos são sempre na direção da defesa de Deus. Os amigos julgam que Jó tenha cometido algum demérito religioso e sofre, naturalmente, as consequências. Suas mazelas são castigos divinos. O conceito evocado pelos amigos necessita ser avaliado. Trata-se da compreensão humana da teologia. Os sistemas religiosos criados pelo homem são de molde a dar condições de aquisições meritocráticas para pleitear a atenção divina. Assim, os amigos de Jó argumentavam que faltava a ele mérito. Esta ideia de que o homem pode produzir boas obras e ser digno é o fundo do sistema religioso judaico, o mesmo que fora combatido por Jesus. O argumento está colocado na dinâmica religiosa cristã onde ritos se tornam moedas de troca.

É importante que se analise o fundamento colocado pela Bíblia sobre o que deve ser buscado por um religioso. A palavra cristão significa seguidor de Cristo. Assim, os cristãos seguirão seu mestre, farão as mesmas obras e abraçarão a formação de um caráter semelhante ao de Jesus. Paulo adverte que devem os cristãos imitar a Cristo; João diz que aquele que segue a Cristo o demonstrará realizando as mesmas obras que Ele executou. Assim, as boas obras são de fundamental importância para definir de que lado estão os seguidores de Cristo. “A vida daquele em cujo coração Cristo habita, revelará a piedade prática. O caráter será purificado, elevado, enobrecido e glorificado. A doutrina pura estará entretecida com as obras de justiça; os preceitos celestiais misturar-se-ão com as práticas santas” (Ellen White, Refletindo a Cristo, p.73).

Por outro lado, o sistema sacrifical ensinava que apesar do perdão e das boas obras, era necessário um substituto para que o pecador não viesse a sofrer a penalidade da lei. Assim, era necessária a figura de um salvador que tivesse meios para pagar a dívida em relação à lei. Nesse caso, a Bíblia nos informa que o nosso substituto ou salvador é Cristo. No livro de Isaías no capítulo 53 temos a explicação de como Jesus nos substituiu. Mas o verso 4 do referido capítulo traz o sistema teológico humano onde encontramos que “nós o reputávamos por aflito”, o mesmo argumento usado pelos amigos de Jó para explicar a razão do sofrimento dele. Podemos ver que o sistema religioso humano prevê que se houver boas obras haverá também o mérito. Mas definitivamente é necessário um salvador, porque estamos submetidos às correntes de Satanás e estas somente serão quebradas com a morte, e neste caso, necessitamos da ação de um salvador que possa nos livrar da pena. Essa condição está explícita em Hebreus 2:14-15: “E, visto como os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo; E livrasse todos os que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à servidão.

A necessidade de um salvador está negada no sistema cristão de méritos. A igreja romana substituiu Cristo pelo sacerdócio romano; os fiéis vão até um sacerdote e buscam nele a intermediação e o perdão. O sistema romano vai muito além, propõe a salvação através da missa e a canonização se o fiel tiver méritos. O santuário celeste onde Deus está e onde se processa o juízo foi transferido para Roma. Os homens são deuses conforme prometera a serpente para Adão e Eva. Esse é o grande engano; um sistema religioso no qual o mérito é suficiente. Tal entendimento perpassa também a maioria das teologias protestantes.

Agora voltando ao livro de Jó, encontramos o principal diálogo. De repente, Deus reaparece a partir do capítulo 38 e começa a revelar-se de uma forma didática e absoluta.

Antes Jó advogava que se lhe fosse dada a oportunidade de dialogar com Deus, explicaria sua situação e demonstraria a Deus aspectos da realidade humana que, segundo sua compreensão religiosa, por Deus não ser homem, escaparia à percepção dEle. Assim Jó montou uma lista de perguntas que seriam a sua defesa. Porém, quando Deus passa a revelar-se demonstrou Sua onipotência e onisciência de uma forma que Jó percebeu-se indigno. Deus não entregou nenhuma explicação sobre o sofrimento de Jó, mas discorreu sobre a abnegação divina, mostrando que a encarnação de Jesus e todo o Seu sofrimento e morte são a antítese que nega as afirmações de Satanás. Após isso, Jó compreende que o sofrimento humano não tem nenhuma importância, pois é a cortina de fumaça usada para impedir a visualização do caráter de Deus; que o grande conflito é muito maior que o egoísmo humano; passa a compreender o papel do homem diante do universo e exclama “Então respondeu Jó ao SENHOR, dizendo: Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido. Quem é este, que sem conhecimento encobre o conselho? Por isso relatei o que não entendia; coisas que para mim eram inescrutáveis, e que eu não entendia. Escuta-me, pois, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu me ensinarás. Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te veem os meus olhos. (Jó 42:1-5).


Podemos perceber, pelo exposto acima, que o sofrimento no contexto deste mundo é provocado pelo inimigo. O propósito dele é formar um ambiente no qual surja o raciocínio da não abnegação de Deus. Trazendo sofrimento Satanás julga que nenhum homem poderá querer abnegação; olhará para si mesmo com autocomiseração e inquirirá onde está a justiça. Neste contexto, um sistema religioso que oferece o mérito como barganha para bênçãos é uma inteligente maneira de reforçar a tese de que Deus não é justo nem abnegado. Não estamos lidando com um inimigo ingênuo, mas sim com uma mente muito altamente capaz e que não deve ser subestimada. Assim, a tarefa de conhecer Deus é o caminho seguro conforme demonstrado no livro de Jó. A cruz é a demonstração da obra de redenção humana, além de manifestar o amor de Deus ao universo; a cruz refuta as acusações de Satanás da impossibilidade de um Deus abnegado.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Confiando em coisas não confiáveis


No próximo ano (2017) dar-se-á a comemoração conjunta católico-luterana dos 500 anos da Reforma protestante que iniciou em 31 de outubro de 1517, quando Lutero afixou as 95 teses na porta da igreja católica de Wittenberg, Alemanha. Esse momento de comemoração se tornará um marco importante no aperfeiçoamento do poder papal, promovendo a aproximação fundamental com a principal liderança protestante, que poderá resultar no anunciado ecumenismo que antecederá os últimos episódios antes do final da história do pecado. Um dos pontos divergentes entre católicos e luteranos está na justificação pela fé. A controvérsia ocorre no aspecto da obra humana que, segundo Lutero, não pode ser apresentada a Deus como garantidora de méritos à salvação. Assim, o conceito de pessoa justa é o foco da controvérsia. 

Essa questão é muito remota. Aparece no mais antigo livro da bíblia, o de Jó, onde logo no primeiro verso do capítulo inicial Deus o define como íntegro. Tal adjetivo é definido no dicionário como inteiro ou completo, significando ser honrado ou imparcial. O referido conceito não propõe a ideia de impecabilidade, mas, na tradição judaica associou-se a palavra Tzedek = justiça com a palavra Tzedaká = justiça social. Erroneamente traduziu-se esta palavra como sendo caridade. Tzedaká não é caridade. A Tzedaká, seria não só “dar o peixe, mas ensinar a pescar”. Não só dar o pão, mas oferecer um emprego ou uma bolsa de estudos.  Assim, Jó era íntegro e não santo como quer o conceito cristão. É importante notar que Jó fazia sacrifícios por ele e por seus filhos e, por esse motivo, Deus o considerava íntegro. Integridade somente é comunicada através de atos de fé nas promessas de salvação, ou seja, tomando a justiça de Jesus como produtora de perdão.

O diálogo entre Deus e Satanás no primeiro capítulo do livro de Jó é revelador do estado desse homem considerado um servo de Deus. Assim, nos versos 6 a 12 vemos o que segue: “E num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles. Então o SENHOR disse a Satanás: Donde vens? E Satanás respondeu ao SENHOR, e disse: De rodear a terra, e passear por ela.  E disse o SENHOR a Satanás: Observaste tu a meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, temente a Deus, e que se desvia do mal. Então respondeu Satanás ao SENHOR, e disse: Porventura teme Jó a Deus debalde? Porventura tu não cercaste de sebe, a ele, e a sua casa, e a tudo quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste e o seu gado se tem aumentado na terra. Mas estende a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e verás se não blasfema contra ti na tua face. E disse o SENHOR a Satanás: Eis que tudo quanto ele tem está na tua mão; somente contra ele não estendas a tua mão. E Satanás saiu da presença do SENHOR.

Nos argumentos dialéticos acima vemos que Satanás sabia que nenhum homem possui justiça. Assim, ele afirma que a obediência de Jó não era isenta de interesses. O que está em pauta é nossa essência egoísta que não nos permite guardar a lei sem interesses. Nossos atos são pecaminosamente ofensivos se a justiça de Cristo não nos for por cobertura. Tudo parece mais claro a respeito do comportamento humano quando observamos a ação de Satanás, na vida de Jó, na tentativa de comprovar suas afirmações. Ele tira inicialmente a riqueza, a principal pilastra na qual toda humanidade se apoia. Depois o inimigo subtrai a família, outra importante pilastra e em seguida afeta a saúde. Essas três pilastras são parte do arrimo que ampara todos os homens e nelas estava também a confiança de Jó. Como se não bastasse, os amigos de Jó aparecem construindo diálogos que ratificam a ideia de segurança na religião. Esta constitui parte da estrutura de arrimo humano. Para os amigos, Jó estava devendo maior rigor religioso, razão para o sofrimento. Porém, para Jó não havia nenhum passivo religioso que justificasse o seu estado. Por essa razão, um encontro com Deus poderia dar-lhe a chance de explicar o que, segundo Jó, escapava da percepção divina sobre a condição humana. No entanto, no capítulo 38, quando começa o diálogo de Deus com Jó, a divindade não responde a nenhum dos argumentos de Jó, levando-o a entender que sem conhecer ao próprio Deus ninguém pode entender as dinâmicas envolvidas na estrutura terrestre e que dizem respeito à disputa entre o bem e o mal.

Deus não debateu com Jó nenhuma razão para o seu sofrimento. Apenas revelou-se como o Senhor de todas as coisas e a causa primária de tudo, ou seja, se Ele tem tudo sob Seu controle, o sofrimento de Jó era parte do seu plano para aprimoramento. Ao perceber a onisciência de Deus, Jó não pode perguntar nada, apenas se deu conta da própria indignidade.

O apóstolo Paulo parece ter passado por um momento semelhante quando solicitou que Deus o curasse do “espinho” que feria a sua carne. A resposta de Deus foi “a minha graça te basta”, significando que Paulo deveria prosseguir em conhecer Deus; e ele aquietou-se.  

Conhecer Deus deveria ser a tarefa mais importante para todos os que se aproximam dEle. Em Jeremias 9:24 lemos: “Mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me entender e me conhecer, que eu sou o SENHOR, que faço beneficência, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o SENHOR”. Há uma razão para tal proceder. O conhecimento sobre Deus trará paz, especialmente nas circunstâncias de uma realidade pecaminosa. Na medida em que Deus se revelar, passaremos a compreender nosso próprio papel na luta entre o bem e o mal, nas várias dimensões nas quais estamos submetidos, ou seja, qual a nossa participação nos plano universal e humano, no sentido de cooperar com nosso Deus na reivindicação da justiça.

Deus revela-se a Jó através de inúmeras perguntas que o levam a perceber que seu sofrimento não era importante em si mesmo, mas uma ferramenta que, no caso de Jó, o levaria a entender melhor o seu próprio comportamento. Assim, pode-se entender algo muito importante: o sofrimento de cada um é pessoal e pode significar que a confiança esteja ainda calcada em pilastras que não podem sustentar. Veja-se o que Jó exclamou “ Então respondeu Jó ao SENHOR, dizendo: Bem sei eu que tudo podes, e que nenhum dos teus propósitos pode ser impedido. Quem é este, que sem conhecimento encobre o conselho? Por isso relatei o que não entendia; coisas que para mim eram inescrutáveis, e que eu não entendia. Escuta-me, pois, e eu falarei; eu te perguntarei, e tu me ensinarás. Com o ouvir dos meus ouvidos ouvi, mas agora te veem os meus olhos. Agora te conheço, antes apenas tinha ouvido falar”. Essas afirmações significaram a libertação de alguém que estava confiando em coisas não confiáveis. Jó entendeu a onipotência de Deus. A primeira coisa que ele reconhece é o limite de seu conhecimento. Suas conclusões se baseavam na ignorância; portanto, embora ele fosse sincero, estava errado.

Quão inadequado parece ser o conhecimento parcial quando brilha a luz de uma verdade maior! Quando Jó fez suas queixas, seu raciocínio lhe parecia irrefutável. Ele achava que sua atitude era justificada. Mas, quando entendeu a Deus mais claramente, seu raciocínio anterior não mais pareceu convincente. A lógica humana muitas vezes se demonstra falha. Ideias que hoje parecem sábias podem se tornar absurdas amanhã. A disposição de Jó para admitir sua ignorância é elogiável. Ele não tenta se desculpar ou defender sua posição. É tão honesto em sua confissão como foi em sua argumentação. Esta característica é parte da integridade que o relato atribui a Jó desde o princípio (Jó l:l). (SDA Bible Commentary, 690).