segunda-feira, 11 de maio de 2020

Balizando fronteiras



 Justiça deriva do latim justitia, cuja raiz é justus=justo, aquele que é conforme o que é legítimo, próprio, adequado, equitativo. Assim, justiça exprime o que se faz conforme o direito, segundo as regres prescritas na lei. Como virtude, a justiça nos faz dar a Deus o que é Dele, e aos homens o que lhes é devido.

No âmbito do Reino de Deus, no qual se entende que está a Sua igreja, a virtude da justiça é a norma áurea.  Por esse motivo, Jesus explicou deveríamos buscar em primeiro o reino de Deus, e a sua justiça e, como consequência, todas as coisas vos serão acrescentadas (Mateus 6:33). Sobre esta virtude, o profeta Isaías enfatizou que o reino de Davi deveria ser fortificado com juízo e com justiça, porque esse era o zelo do SENHOR dos Exércitos (Isaías 9:7).

Não é diferente na igreja. O apóstolo Paulo reitera que o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo (Romanos 14:17). Assim, nada é mais urgente para a igreja do que o intuir os limites do conceito de justiça, mormente estando num mundo cruelmente injusto.

A prática da Justiça, para muitas mentes, é confundida com a realização dos ritos religiosos. Mas, Jesus, o grande mestre, ensinou que a preocupação com o direito de terceiros deve ser a principal inquietação. Tal raciocínio está também nas palavras do profeta Isaías (capítulo 58), bem como nas respostas aos discípulos quando Jesus explicou-lhes sobre as acusações alocadas sobre aqueles que serão julgados culpados no juízo final (Mateus 25:31-46). Portanto, é muitíssimo apropriado que sejam percebidos os limites da justiça para que operemos nossa própria salvação.

Algumas demarcações da justiça de acordo com a Bíblia
Em Deuteronômio (capítulo 21:1-9) encontramos um trecho do discurso de Moisés aos israelitas, um pouco antes da entrada na terra prometida. Ali Moisés levanta uma questão que, para os ocidentais, passa despercebida. Se uma pessoa for assassinada em uma estrada e não se souber quem a golpeou, devem-se tomar algumas medidas. Primeiramente, traçar uma linha reta entre o morto e as cidades ao redor. Aquela que estiver mais próxima ao morto será considerada culpada. Vê-se que se trata de uma questão coletiva. A cidade é a culpada. Logo, os anciãos (representantes) da cidade mais próxima do morto deverão comprovar que não são culpados. Para tal, deverão agir da seguinte forma: Os anciãos da cidade mais próxima do morto tomarão uma novilha da manada, que não tenha trabalhado, nem puxado com o jugo, e a trarão a um vale de águas correntes, que não foi lavrado, nem semeado; e ali, naquele vale, desnucarão a novilha. Chegar-se-ão os sacerdotes, filhos de Levi, porque o SENHOR , teu Deus, os escolheu para O servirem, para abençoarem em nome do SENHOR e, por Sua palavra, decidirem toda demanda e todo caso de violência. Todos os anciãos desta cidade, mais próximos do morto, lavarão as mãos sobre a novilha desnucada no vale e dirão: As nossas mãos não derramaram este sangue, e os nossos olhos o não viram derramar-se (Deuteronômio 21:4-7).

A cerimônia acima indicava que deveria haver um sacrifício para purificação e, ao lavarem as mãos, os representantes da cidade considerada culpada explicitavam sua inocência, sendo que deveria ficar formalmente notório que o povo das proximidades não poderia ser considerado culpado, porque tinham feito o que lhes era possível para que as estradas que levavam à sua cidade fossem seguras como deveriam.

O que vemos acima é aplicação da justiça no nível comunitário. Uma pessoa assassinada sem um culpado efetivo torna culpável a comunidade mais próxima, uma vez que o morto tinha direito à segurança. Todavia, essa abordagem também tem abrangência pessoal, ponderando que uma comunidade é formada por pessoas. Cada pessoa é um culpado em potencial e, neste caso, deveria ter realizado a sua parte individual para a segurança social. Em termos práticos, nossa sociedade não vislumbra culpa sobre qualquer comunidade por causa de um assassinato. Nosso entendimento é de que se não participamos, nada nos toca. Porém, esse é o raciocínio da távola rasa; indica uma condição em que a consciência é desprovida de qualquer conhecimento inato. Porém, a Torá está afirmando autoritativamente que mesmo que não tenhamos participação direta em um acontecimento desastroso a outrem, em realidade, temos uma parcela de culpa se não subministramos segurança.

No âmbito da igreja, o texto da Torá parece indicar que pessoas que morrem prematuramente, se  a causa determinada, por exemplo, for descuido com sua saúde, tal comunidade somente poderia lavar as mãos se tivesse alertado sobre o perigo e, ainda mais, se tivesse ministrado educação suficiente para evitar acidentes.

No nível familiar, a justiça possui nuances chamativas. A nenhum homem é permitido divorciar-se sem que a mulher receba o que lhe é justo. No caso dos filhos de um casamento desfeito, nenhum deve ser preterido em seus direitos a segurança, proteção, educação e herança. Filhos legítimos ou não, segundo a Torá terão os mesmos direitos.

Do ponto de visto dos irmãos, aquele que mais possui deverá amparar os de menores possibilidades. Um exemplo bíblico veemente é Jacó, quem roubou a primogenitura do irmão Esaú. Quando do seu regresso à terra de nascimento, teve um encontro com Deus e, a partir dali, devolveu ao irmão com generosidade tudo o que lhe pertencia. Todavia, a realidade atual do cristianismo é insuficiente, uma vez que os conceitos de convivência (obrigações) fraterna são deixados, sendo enfatizado o misticismo. Há, por parte dos líderes religiosos, afirmativas vagas tais como “vamos entregar nossa vida a Deus”, sendo que se os líderes forem indagados sobre como realizar a referida entrega, em verdade não saberiam o que ensinar. No entanto, a entrega a Deus é materializada através da aplicação da justiça. Ninguém está entregue a Deus se não promove o bem estar dos irmão de sangue e dos demais irmãos.

Para os filhos desobedientes, há conselhos na Torá, de modo a que não percam a vida (Deuteronômio 21:18-21), pois se forem desobedientes contumazes deverão ser levados pelos pais a julgamento, a fim de que, sentenciados descontaminem o mundo por causa das suas injustiças. Nestes casos, os pais também assumem suas culpas por não terem conseguido educar. A sociedade, depois da morte do desobediente, estará livre de uma influência negativa. Hoje, porém, o princípio acima parece desconsiderado, todavia, filhos desobedientes têm morte prematura, sendo que para os contemporâneos, a morte destes pode parecer natural, mas, trata-se de um julgamento.

Também, aos executados de morte, deve-se dar dignidade enterrando-os. A Torá ensina que não deverão ficar expostos, mas enterrados antes do por do sol, para que haja descontaminação e o novo dia chegue em ambiente moralmente são.

Os exemplos acima citados são apenas alguns dos marcos para aplicação da justiça. Servem para demonstração do quanto importa entender tais balizas, considerando que o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça.

No livro de Daniel é apresentado um poder político-religioso (chifre pequeno) que vincula um sistema de injustiças contra os chamados santos do Altíssimo. Tal sistema perdura até que Deus intervém e restaura a justiça (Daniel 7:22). Assim também ocorrerá no final dos tempos. Um juízo verificará quem são os justos e, ato contínuo, estes serão selados; toda injustiça praticada será condenada e punida, apenas os selados escaparão e possuirão o Reino. Essa informação nos permite compreender a função basilar da justiça no âmbito celeste. Porém, o cristianismo perdeu o interesse pelo Antigo Testamento, onde os princípios da justiça estão suficientemente explicados. Toda justiça do Novo Testamento tem sua raiz no Antigo Testamento. Jesus referindo-se à importância da justiça disse: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus” (Mateus 5:20), demonstrando que a justiça dos homens não é suficiente para assegurar absolvição no juízo final. Uma coisa é certa, os cristãos atuais consentem que se forem observadas as regras de justiça conciliadas por cada civilização, poder-se-á esperar meritocraticamente indulto no juízo final. Por essa razão, ninguém está preocupado com quem foi assassinado; se foi realizada alguma ação para oferecer segurança àquela vítima. Também, nas ações de divórcio, é muito comum que maridos cristãos deixem ao desemparo esposas rejeitadas. Porém, o crime alegado diante do justo juiz é o não cumprimento das ordenanças relativas à justiça, aquelas que estão claras no Antigo Testamento. “E será para nós justiça, quando tivermos cuidado de cumprir todos estes mandamentos perante o SENHOR nosso Deus, como nos tem ordenado” (Deuteronômio 6:25). “A justiça, somente a justiça seguirás; para que vivas, e possuas em herança a terra que te dará o SENHOR teu Deus” (Deuteronômio 16:20).

A nenhum crente é permitido defraudações ou espoliações. Aqueles que servem a Deus e sonegam deveres (um bom exemplo é a sonegação de impostos) – dai a César o que é de César – não poderão enfrentar o justo juiz; aqueles que roubam sem violência (por exemplo, plágios literários, ou sonegação de direitos autorais) também não estarão entre os assinalados ou selados. Por outro lado, pais que negam direitos aos filhos, ou ainda, órfãos que mourejam em comunidades, especificamente as cristãs, e que não são atendidos, podem ser tipificados como os assassinados com culpados ocultos. Mas em realidade, a cidade (comunidade) mais próxima é acusada pelo crime.

Finalmente, “Porque abominação é ao SENHOR teu Deus todo aquele que faz isto, todo aquele que fizer injustiça” (Deuteronômio 25:16).