quinta-feira, 15 de março de 2018

Um manancial, cujas águas nunca faltam


Sempre que quisermos alcançar qualquer assunto (especialmente no âmbito bíblico), e sempre que quisermos contextualizar o presente, obrigatoriamente teremos que dominar o passado; referimo-nos às origens, pois a realidade atual é consequência dos acontecimentos passados. Assim, voltemos no tempo ao período no qual principiou o grande conflito entre o bem e o mal. “E houve batalha no céu; Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhavam o dragão e os seus anjos; Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele. E ouvi uma grande voz no céu, que dizia: Agora é chegada a salvação, e a força, e o reino do nosso Deus, e o poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é derrubado, o qual diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite. E eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho; e não amaram as suas vidas até à morte. Por isso alegrai-vos, ó céus, e vós que neles habitais. Ai dos que habitam na terra e no mar; porque o diabo desceu a vós, e tem grande ira, sabendo que já tem pouco tempo” (Apoc. 12:7-10).

O texto bíblico trata de dois períodos distintos e disjuntos na história cósmica. A expulsão de Lúcifer com os anjos que o apoiaram ocorreu antes da criação da Terra. Quando o texto passa a tratar da chegada da salvação, o tempo corresponde a contemporaneidade de Cristo entre os homens. Explica que mesmo que o diabo tenha vindo à Terra, os homens venceram pelo sangue do cordeiro e pela palavra do seu testemunho. Ellen White, no livro O Desejado de todas as nações, à página 26, explica o que significa vencer pelo sangue e pela palavra do testemunho, dizendo: “Satanás aborrecera a Cristo no Céu, por causa de Sua posição nas cortes de Deus. Mais ainda O aborreceu quando se sentiu ele próprio destronado. Odiou Aquele que Se empenhou em redimir uma raça de pecadores. Não obstante, ao mundo em que Satanás pretendia domínio, permitiu Deus que viesse Seu Filho, impotente criancinha, sujeito à fraqueza da humanidade. Permitiu que enfrentasse os perigos da vida em comum com toda a alma humana, combatesse o combate como qualquer filho da humanidade o tem de fazer, com risco de fracasso e ruína eterna. O coração do pai humano compadece-se do filho. Olha a fisionomia do pequenino, e treme ante a idéia dos perigos da vida. Anela proteger seu querido do poder de Satanás, guardá-lo da tentação e do conflito. Para enfrentar mais amargo conflito e mais terrível risco Deus deu Seu Filho unigênito, para que a vereda da vida fosse assegurada aos nossos pequeninos. “Nisto está o amor.” Maravilhai-vos, ó céus! e assombrai-vos, ó Terra!”

No livro “História da Redenção, página 19, a mesma autora diz que “[...] Toda a hoste celestial reconheceu e adorou o Deus da justiça. Nenhuma mácula de rebelião foi deixada no Céu. Tudo voltara a ser paz e harmonia como antes. Os anjos do Céu lamentaram a sorte daqueles que tinham sido seus companheiros de felicidade e alegria. Sua perda era sentida no Céu”. É importante verificar que o texto acima explica que a hoste celestial, ou seja, os anjos, reconheceram a justiça de Deus, porém, o restante do universo não está incluído na informação, significando que a dúvida sobre a aplicação da justiça estava ainda permeando o universo.

Em seguida ao desfecho do conflito no céu, culminando com a expulsão dos rebeldes, o Pai consultou o filho. Veja como o livro História da Redenção, página 20, expõe: “O Pai consultou Seu Filho com respeito à imediata execução de Seu propósito de fazer o homem para habitar a Terra. Colocaria o homem sob prova a fim de testar sua lealdade antes que ele pudesse ser posto eternamente fora de perigo. Se ele suportasse ao teste com o qual Deus considerava conveniente prová-lo, seria finalmente igual aos anjos. Teria o favor de Deus, podendo conversar com os anjos, e estes com ele. Deus não achou conveniente colocar os homens fora do poder da desobediência”.

Analisando a exposição acima, algumas perguntas surgem: 1. Por que o Pai consultou o filho para “execução imediata” de seu propósito de fazer o homem para habitar a Terra? 2. Por que deveria o homem ser colocado sob prova a fim de testar sua lealdade?

Na mesma página 20, a autora explica o que segue: “Pai e Filho empenharam-Se na grandiosa, poderosa obra que tinham planejado — a criação do mundo. A Terra saiu das mãos de seu Criador extraordinariamente bela. Havia montanhas, colinas e planícies, entrecortadas por rios e lagos. A Terra não era uma extensa planície, mas a monotonia do cenário era quebrada por montanhas e colinas não altas e abruptas como hoje são, mas de formas regulares e belas. As rochas altas e desnudas não podiam ser vistas sobre ela, mas estavam debaixo da superfície, correspondendo aos ossos da Terra. As águas estavam distribuídas regularmente. As montanhas, as colinas e as belíssimas planícies eram adornadas com plantas, flores e árvores altas e majestosas de toda espécie, muitas vezes maiores e mais belas do que são agora. O ar era puro e saudável, e a Terra parecia um nobre palácio. Os anjos deleitavam-se e regozijavam-se com as maravilhosas obras de Deus”.

O empenho do Pai e do Filho na grandiosa obra, a Terra extraordinariamente bela chama nossa atenção, ainda mais porque os anjos deleitavam-se e regozijavam-se com a maravilhosa obra. Por acaso as outras obras que Deus já realizara não eram boas e maravilhosas também? Por qual motivo os anjos maravilhavam-se? Quer nos parecer que a Terra seria um projeto dentro do plano emergencial para o caso do surgimento do pecado. Por essa razão o Pai consultou o Filho sobre a execução imediata. A beleza extraordinária, incomum, é algo que merece um pouco de atenção. O termo beleza na Bíblia, ou no ambiente do Antigo Testamento significa o perfeito funcionamento da lei de Deus. Extraordinariamente bela, ou seja, funcionamento mais que adequado da lei, fato expresso na afirmação de Deus quando disse que a criação era boa (Gênesis 1). Um detalhe que pode parecer insignificante na citação acima de Ellen White é “as águas estavam distribuídas regularmente”, indicando que em qualquer lugar da Terra havia água, cenário muito diferente do atual, onde há extensas áreas terrestres sem água. Também, havia uma distribuição regular de três relevos, montanhas, colinas e planícies. Estas informações deixam transparecer que havia justiça na distribuição dos relevos e da água. Em qualquer lugar esses elementos podiam ser encontrados. A justiça, o atributo atacado pelos rebeldes, estava demonstrada pela criação da Terra. Tudo estava funcionando dentro dos princípios justos numa demonstração de como a lei de Deus deve operar.

Em seguida vem a criação do homem. Após levarem a cabo seu propósito de criar a Terra e toda a vida nela, o Pai e o Filho consentiram em fazer o homem à sua própria imagem. Os atributos de justiça de Deus estavam no homem. Se olharmos melhor a sequenciada criação, vamos encontrar que após a expulsão dos rebeldes do céu, a Terra e homem são criados, extraordinariamente belos; os anjos estavam admirados com toda criação. Há uma clara indicação de que a nova criação era uma demonstração cabal do funcionamento da lei de Deus e da Sua justiça. O universo deveria ver e estudar sobre a justiça de Deus através da criação concluída.

No periódico The Review and Herald, 18 de Novembro de 1888, Ellen White escreveu o que segue: “Manifesta-se o poder de Deus no bater do coração, na ação dos pulmões, e nas correntes vivas que circulam pelos mil diferentes condutos do corpo. Somos-Lhe devedores por todo momento de existência, e por todos os confortos da vida. As faculdades e habilitações que elevam o homem acima da criação inferior, são dotes do Criador. Ele nos cumula de benefícios Seus. Somos-Lhe devedores do alimento que comemos, da água que bebemos, da roupa que vestimos, do ar que respiramos. Sem a Sua especial providência, o ar estaria cheio de pestilência e de veneno. Ele é generoso benfeitor e preservador. O Sol que brilha sobre a Terra, e embeleza toda a Natureza, a encantadora e solene luminosidade da Lua, os esplendores do firmamento, salpicado de brilhantes estrelas, as chuvas que refrescam a terra, e fazem florescer a vegetação, as preciosas coisas da Natureza em toda a sua variada riqueza, as árvores altaneiras, os arbustos e as plantas, o grão tremulante, o céu azul, a terra verde, a mudança do dia e da noite, a renovação das estações, tudo fala ao homem do amor de seu Criador. Tem-nos Ele ligado a Si mesmo por todos esses laços do Céu e da Terra. Cuida de nós com mais ternura do que cuida uma mãe de um filho em aflição”. Tais afirmativas mostram o caráter de um Deus generoso e benfeitor que colocou no homem o seu próprio caráter e, como consequência, a criatura tornou-se um recipiente contínuo com a função de ser doador contínuo. Recebendo de Deus deveria abençoar seus semelhantes e a todos os tipos de vida colocados ao seu dispor. E assim, foi-lhe dada a ordem de cuidar (Gênesis 2:15).

Agora vamos olhar por outro prisma o caráter de Deus e a Sua lei em funcionamento. Após a criação dos domínios (ar, terra e água) e dos seus preenchimentos com as formas animadas e inanimadas, Deus cria, no sétimo dia, um marco moral muitíssimo importante o qual chamou de “shabath” (sábado), uma expressão hebraica que significa cessar.

No livro Desejado de Todas as Nações, página 192, Ellen White explana sobre a razão do cessar no shabath: “O sábado foi santificado na criação. Instituído para o homem, teve sua origem quando “as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus rejubilavam”. Jó 38:7. Pairava sobre o mundo a paz; pois a Terra estava em harmonia com o Céu. “Viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom” (Gênesis 1:31); e Ele repousou na alegria de Sua concluída obra”. Gênesis 2:1-3 assinala que “Assim os céus, a terra e todo o seu exército foram acabados. E havendo Deus acabado no dia sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo, e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra que Deus criara e fizera”. Portanto, Deus separou o dia sétimo para uso santo. Deu-o a Adão como dia de repouso no qual ele deviria ver um sinal do poder de Deus e do Seu amor, como afirma a escritura no Salmo 111:4 “Fez lembradas as Suas maravilhas”. Diz a escritora Ellen White no livro Desejado de Todas as Nações, página 20, que as coisas que estão criadas declaram os atributos invisíveis de Deus, Seu poder e Sua divindade (Romanos 1:20). A Divindade de Deus está revelada na criação. No hebraico divindade significa transcendência, ou seja, o caráter inerente daquilo que é de natureza superior, portanto, radicalmente diferente e separado da realidade sensível.

Se Deus criou o homem à Sua imagem, há no homem divindade também. O ser criado causou admiração aos anjos. Certamente a capacidade de ser de natureza superior, de ir além da realidade sensível causou admiração. Destarte, se a criação torna visível a divindade de Deus, o que tornaria visível a divindade do homem?

Agora vamos buscar compreender a razão pela qual Deus cria o shabath e o dá ao homem. Somente através do shabath pode-se contemplar uma dimensão que em nenhum outro marco moral pode ser observada.

Em Êxodo 20:8-11 lemos “Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado do SENHOR teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou; portanto abençoou o SENHOR o dia do sábado, e o santificou”. O texto acima refere-se à redação do quarto mandamento. Numa leitura crítica encontramos a seguinte lógica: O cessar do labor humano no shabath está relacionado ao fato de que Deus cessou o labor. Olhado um pouco melhor, e considerando que o homem é imagem de Deus, concluímos que Deus terminou Sua obra, a da criação do mundo físico (céus, terra e mar) e, no caso do homem, o mandamento explicitamente cobra o cessar da obra do homem, a qual deve ser realizada no mesmo espaço de tempo que Deus utilizou para concluir Sua obra. Assim, o shabath deve ser um encontro entre as obras de Deus e as obras do homem. Porém, acrescentamos aqui as palavras de Cristo quando disse que “o sábado foi feito por causa do homem” (Marcos 2:27). Se a Terra foi criada para demonstração do funcionamento pleno da Lei de Deus, então o shabath é um domínio para demonstração do funcionamento da Lei em ambos comandos, o de Deus e o do homem. Sendo criado para o homem após o aparecimento do pecado, podemos entender que o shabath veio para evitar que o pecado contaminasse a imagem de Deus. Se o mandamento declara cessação da obra humana, há uma pergunta que não quer calar: Sendo o shabath o encontro entre as obras de Deus e as do homem, quais são as obras do homem?

O quarto mandamento diz o que deve cessar juntamente com o homem: todos os outros homens e os animais. O cessar do shabath inclui uma dimensão moral gigantesca; Deus construiu o mundo físico justo e ao homem cabe a construção do mundo social justo, porque o cessar do labor de todos determina justiça. Portanto, assim como a divindade de Deus está nas obras criadas, a divindade humana, ou seja, a justiça humana estará nas obras sociais. A transcendência humana que o faz ultrapassar as coisas sensíveis está na construção da sociedade justa. Em Gênesis 1:27-28 lemos “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra”.  Vemos que o homem criado à imagem de Deus e formando uma sociedade com a mulher deveria multiplicar o modelo social dado por Deus e deveria dominar toda criação fazendo-a sujeitar-se ao modelo social justo entregue, criando um ambiente de cooperação onde os princípios da lei estariam em vigência. Assim, no quarto mandamento ao homem é ordenada a construção de uma sociedade justa baseada no modelo do Gênesis e, no shabath, a obra humana deveria ser trazida diante de Deus. Por isso, em Êxodo 34:20 é comandada a ordem de não aparecer diante de Deus no shabath de mãos vazias.
Se o homem foi criado semelhante a Deus, as obras que faria nos seis dias seriam também semelhantes às de Deus. Assim poderia descansar, e no descanso contemplar Deus. Aperfeiçoaria a si mesmo construindo um mundo social que refletiria o caráter de Deus. Então, a pergunta agora é: como ocorre a construção do mundo social?

Para responde-la devemos tomar o capítulo 58 de Isaías. Ali o profeta é instado a clamar em alta voz e anunciar ao povo a sua transgressão. Para não tomar todo o capítulo, vejamos os versos 6-14 os quais esclarecem os protocolos para a referida construção: “Porventura não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo e que deixes livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres abandonados; e, quando vires o nu, o cubras, e não te escondas da tua carne? Então romperá a tua luz como a alva, e a tua cura apressadamente brotará, e a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do SENHOR será a tua retaguarda.  Então clamarás, e o SENHOR te responderá; gritarás, e ele dirá: Eis-me aqui. Se tirares do meio de ti o jugo, o estender do dedo, e o falar iniquamente; E se abrires a tua alma ao faminto, e fartares a alma aflita; então a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como o meio-dia. E o SENHOR te guiará continuamente, e fartará a tua alma em lugares áridos, e fortificará os teus ossos; e serás como um jardim regado, e como um manancial, cujas águas nunca faltam. E os que de ti procederem edificarão as antigas ruínas; e levantarás os fundamentos de geração em geração; e chamar-te-ão reparador das roturas, e restaurador de veredas para morar. Se desviares o teu pé do sábado, de fazeres a tua vontade no meu santo dia, e chamares ao sábado deleitoso, e o santo dia do SENHOR, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falares as tuas próprias palavras, Então te deleitarás no SENHOR, e te farei cavalgar sobre as alturas da terra, e te sustentarei com a herança de teu pai Jacó; porque a boca do SENHOR o disse”.

Ellen White refere-se à construção do mundo social dizendo “Não posso deixar de ser demasiado veemente em insistir com todos os membros de nossas igrejas, todos quantos são verdadeiros missionários, todos quantos creem na terceira mensagem angélica, todos quantos desviam o pé de profanar o sábado, para considerarem a mensagem do capítulo cinquenta e oito de Isaías. A obra de beneficência recomendada nesse capítulo é a obra que Deus requer de Seu povo neste tempo. É uma obra indicada por Ele próprio. Não somos deixados em dúvida quanto ao lugar da mensagem e ao tempo de seu assinalado cumprimento, pois lemos: “E os que de ti procederem edificarão os lugares antigamente assolados; e levantarás os fundamentos de geração em geração; e chamar-te-ão reparador das roturas, e restaurador de veredas para morar.” Isaías 58:12.

Isaías adverte que somente encontrar-se-á o deleite sabático se apresentarmos nossas obras sociais. Fomos criados para sermos recipientes contínuos e nesta condição devemos dar continuamente. Essa é a forma como a humanidade transcende e mostrar a sua divindade. É no shabath que o universo estuda sobre a justiça e o amor de Deus contemplando a Sua obra e as ações dos filhos de Deus.