1. Introdução
A origem do mal no universo não é apenas um evento de desobediência,
mas uma ruptura ontológica que expõe o conflito entre dois sistemas morais: o
do amor absoluto, que sustenta a existência, e o da autonomia absoluta, que
nega esse fundamento. A Bíblia revela que Deus é amor (1Jo 4:8), o que
significa que o amor é a própria estrutura do ser, a lei que mantém todas as
coisas em coesão¹. Quando um ser racional tenta existir fora desse amor, ele se
torna contraditório à realidade que o sustenta.
Ellen G. White descreve essa dinâmica com precisão: “O amor próprio
destruiu o equilíbrio da mente de Lúcifer; ele não suportava ver o Filho de
Deus em posição superior.” (WHITE, 2021, p. 495). Ao romper com o amor, Lúcifer
não apenas desobedeceu — ele negou a ontologia divina e inaugurou a lógica da
autodefinição, cujo eco histórico é o relativismo moderno. Assim, a pergunta da
serpente — “É assim que Deus disse?” (Gn 3:1) — contém o germe da filosofia
moderna: a dúvida epistemológica erigida em virtude.
Este estudo parte da hipótese de que o Renascimento e o Iluminismo,
embora distintos em forma e propósito, materializam culturalmente o mesmo
princípio inaugurado por Satanás: o de que a verdade pode ser redefinida pelo
sujeito. Por meio dessa análise, propõe-se que a rebelião satânica é o
protótipo metafísico do projeto de autonomia da modernidade — a substituição da
lei divina por leis humanas, e da revelação pelo raciocínio autônomo².
¹ Cf. WHITE, 2020, p. 26. ²
Ver também AGOSTINHO, 2012, Livro XIV, cap. 7, p. 579–581.
2. A Ruptura com o Amor e a Origem do Ódio
A ontologia cristã ensina que o amor é a condição da existência e a
forma suprema da razão. Para Agostinho, “a ordem do amor faz a cidade de Deus,
e a desordem do amor faz a cidade dos homens” (AGOSTINHO, 2012, XIV, 7, p.
581). Lúcifer, ao inverter essa ordem, inaugurou a primeira autorreferência do
bem — o momento em que a criatura passou a ser medida de si mesma.
White afirma: “Separar-se de Deus é cortar o vínculo da vida.”
(WHITE, 2020, p. 38). Ao tentar ser “semelhante ao Altíssimo” (Is 14:14),
Satanás rompeu o princípio da interdependência e passou a odiar tudo o que
lembrava a ordem do amor — inclusive os seres humanos, criados à imagem de
Deus. Esse ódio não é um sentimento transitório, mas uma condição ontológica: o
ódio é o resultado lógico de uma mente que rejeitou a Verdade.
Na história do pensamento, essa ruptura se repete em diferentes
níveis: na filosofia do sujeito de Descartes, no imperativo autônomo de Kant e
no naturalismo moderno. Em todos os casos, há uma transposição da origem da lei
— de Deus para o homem. O ódio, portanto, não é apenas teológico; é
epistemológico: nasce quando a verdade se torna função do eu³.
³ Cf. KANT, 2003, p. 48.
3. O Sistema Alternativo: da Cooperação à Competição
A lei de Deus é a codificação moral do amor; ela não restringe, mas
sustenta a liberdade. “Toda violação da lei do amor resulta em ruína.” (WHITE,
2020, p. 26). O sistema satânico substitui a cooperação pela competição, o
serviço pelo domínio, e o amor pela autopreservação. Na criação divina, a
interdependência é o eixo da vida; na rebelião, a independência é o eixo da
destruição.
Pascal observou que “a grandeza do homem consiste em reconhecer que
é miserável” (PASCAL, 2005, §434, p. 152). A negação dessa dependência é a
semente de toda corrupção moral. Em termos teológicos, o pecado é uma inversão
da gravidade moral: o ser que deveria orbitar em torno de Deus tenta
transformar-se em centro.
C. S. Lewis expressa a mesma ideia: “A abolição do homem começa
quando se separa a moral da verdade transcendente.” (LEWIS, 1943, p. 67).
Assim, o sistema alternativo não é um cosmos autônomo, mas um anticosmos, uma
simulação da vida cuja energia deriva da negação do amor. O orgulho, ao
contrário do amor, é entrópico: consome o que deveria sustentar.
⁴ Cf. WHITE, 2021, p. 494.
4. A Tese da Verdade Negociável
A rebelião satânica tem natureza epistemológica: ela surge como
negação da verdade enquanto realidade absoluta. No Éden, a serpente questiona a
Palavra: “É assim que Deus disse?” (Gn 3:1). A dúvida não busca esclarecimento,
mas tenta redefinir o princípio de autoridade. A verdade passa a ser tratada
como subjetiva e flexível, dependente do sujeito⁵.
Jesus identifica essa estrutura do engano: “Ele não se firmou na
verdade, porque não há verdade nele” (Jo 8:44). Em termos teológicos, a mentira
é uma ruptura ontológica — introduz incoerência no ser. White afirma que
Satanás apresentou o governo de Deus como arbitrário e a lei como impedimento
ao progresso (WHITE, 2021, p. 493). Pascal descreve o paradoxo moderno: “Nada é
tão conforme à razão quanto o repúdio à razão” (PASCAL, 2005, §272, p. 89).
O princípio da verdade negociável reaparece no relativismo moral e
na filosofia moderna. Ao fazer da consciência fonte da lei, o Iluminismo
substituiu a revelação pela autonomia epistemológica. Essa estrutura é a base
comum entre o pecado e o racionalismo moderno: ambos propõem emancipação do
sujeito pela negação da Verdade transcendente.
⁵ Cf. WHITE, 2021, p. 493; ver Jo 8:44.
5. O Ganho Ilusório da Rebelião
O objetivo de Satanás era provar que um ser poderia existir
independentemente de Deus, estabelecendo sua própria moralidade: autonomia
ontológica, o sonho de ser causa sui⁶. Contudo, como afirma Tomás de Aquino, é
impossível que algo seja causa eficiente de si mesmo (*Suma Teológica*, I, q.
2, a. 3).
White descreve: “Ao desejar ser independente de Deus, Lúcifer
decaiu; e todo ser que procura a grandeza fora dEle, cai igualmente.” (WHITE,
2021, p. 494). Agostinho chama essa dinâmica de curvatio in se, a vontade que
se curva sobre si mesma (AGOSTINHO, 2012, XIV, 13, p. 586). Quando a criatura
deixa de amar o bem em Deus e passa a amar a si, a liberdade se transforma em
servidão.
Kant, ao tentar fundar a moral na razão pura, ecoou a contradição:
“A vontade é lei para si mesma.” (KANT, 2003, p. 48). O sujeito que legisla
para si torna-se sua própria prisão. Em síntese, a rebelião de Lúcifer e o
projeto iluminista partilham a mesma utopia: liberdade sem dependência,
moralidade sem transcendência.
⁶ *Causa sui*: ser que é causa de si mesmo — atributo exclusivo de
Deus.
6. O Projeto Político do Mal
O mal é também um projeto político. Lúcifer não desejou apenas ser
livre, mas governante: “Tu, que enfraquecias as nações!” (Is 14:12). A negação
da moral divina precisa de uma ordem social alternativa para se legitimar.
White resume: “Satanás desejava que houvesse um governo sem lei,
liberdade sem obediência; e isso é anarquia.” (WHITE, 2021, p. 501). A anarquia
aqui é estrutura fundada na negação da Verdade. Sem um bem absoluto, o poder
torna-se autolegítimo. Lewis adverte: “O poder de fazer o que se quer é o poder
de alguns homens sobre os outros.” (LEWIS, 1943, p. 67).
Historicamente, o projeto manifesta-se em dois extremos:
totalitarismos tecno-racionais (Estado absolutizado) e liberalismos
relativistas (lei moral dissolvida). Ambos têm a mesma raiz: a negação da
soberania divina.
7. A Impossibilidade de Alternar o Sistema Divino
A ideia de um universo sustentado por outra moral é contraditória.
Deus cria conforme Sua natureza; a lei moral é a forma racional do amor.
Alterar o princípio do amor implicaria alterar o próprio ser de Deus. “Toda
violação da lei do amor resulta em ruína.” (WHITE, 2020, p. 26).
Plantinga denomina isso de incoerência performativa: negar Deus é
negar as condições de possibilidade da moral (PLANTINGA, 2017, p. 125). White
descreve o juízo como reequilíbrio da ordem: “O fogo que consome os ímpios é o
amor de Deus que, para eles, se torna tormento.” (WHITE, 2021, p. 543). O mal
não constrói cosmos; apenas o consome.
8. O Projeto Satânico na História: Renascimento e
Iluminismo
O Renascimento desloca o centro do sagrado para o humano (séculos
XIV–XVI): o antropocentrismo substitui o teocentrismo; a criatura torna-se
medida de todas as coisas. A exaltação do gênio humano simboliza o gesto
luciferiano de querer ser semelhante ao Altíssimo, sem partilhar Seu caráter.
O Iluminismo (séculos XVII–XVIII) reveste de racionalidade a mesma
rebelião. “O homem alcança maioridade quando se serve de seu próprio
entendimento.” (KANT, 2011, p. 1). A consciência torna-se tribunal supremo.
White percebe: “Satanás tem operado por meio de filosofias e ciências para
substituir a lei de Deus pela lei dos homens.” (WHITE, 2021, p. 582). Pascal
adverte: “O coração tem razões que a razão desconhece.” (PASCAL, 2005, §277, p.
132).
9. Crise Contemporânea e Restauração da Verdade
A autonomia moderna resulta no relativismo contemporâneo. Nietzsche
proclama: “Deus está morto.” (NIETZSCHE, 2001, p. 167). Lewis replica: quando o
homem mata Deus, mata a si mesmo (LEWIS, 1943, p. 74). Charles Taylor descreve
o self autônomo como identidade autorreferente e frágil (TAYLOR, 2011, p. 52).
White alerta: “A anarquia moral será o resultado de rejeitar a lei
divina como norma.” (WHITE, 2021, p. 589). A restauração da verdade ocorre em
Cristo: “Sem mim nada podeis fazer.” (Jo 15:5). “Deus não pode nos dar
felicidade e paz à parte de Si mesmo, porque não há tal coisa.” (LEWIS, 1943,
p. 99). O Evangelho restaura ontologicamente a Verdade, reconectando o ser ao
Amor.
10. Conclusão
O conflito cósmico é um debate moral sobre a estrutura do ser. O
amor sustenta o universo; a rebelião tenta substituí-lo pela autonomia. O
sistema satânico não propõe alternativa coerente: inverte o eixo da vida e, ao
negar o amor, destrói a base do ser. “O trono de Cristo se baseia na justiça e
na verdade; o de Satanás, na mentira e na usurpação.” (WHITE, 2021, p. 503).
A história humana demonstra por experiência a falência da tese
satânica: a verdade não é negociável. Ao fim, o universo reconhecerá que a vida
só é possível sob a lei do amor. A vitória de Cristo é a reintegração da moral
à ontologia — a restauração da realidade para a comunhão eterna.
Referências
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Trad. Nair de Assis Oliveira. São
Paulo: Paulus, 2012. Livro XIV.
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol. I. São Paulo: Loyola, 2005.
DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes,
1999.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
KANT, Immanuel. Resposta à Pergunta: O que é o Esclarecimento? Trad.
Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
LEWIS, C. S. A Abolição do Homem. São Paulo: Vida, 1943.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
PLANTINGA, Alvin. Where the Conflict Really Lies: Science, Religion,
and Naturalism. Oxford: Oxford University Press, 2017.
TAYLOR, Charles. As Fontes do Self: A Construção da Identidade
Moderna. São Paulo: Loyola, 2011.
WHITE, Ellen G. Educação. 9. ed. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira,
2020.
WHITE, Ellen G. O Desejado de Todas as Nações. 13. ed. Tatuí: Casa
Publicadora Brasileira, 2021.
WHITE, Ellen G. O Grande Conflito. 2. ed. Tatuí: Casa Publicadora
Brasileira, 2021.
WHITE, Ellen G. Patriarcas e Profetas. 10. ed. Tatuí: Casa
Publicadora Brasileira, 2020.
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