domingo, 9 de agosto de 2020

Pais são juízes e sacerdotes


Os pais, a parte masculina de um matrimônio, são, em condições normais de temperatura e pressão, juízes e sacerdotes com funções muito específicas no ambiente do lar. Um juiz tem a função de aplicar a justiça, equilibrar assimetrias, consertar iniquidades. Também é papel do juiz esclarecer sobre a lei e os direitos e deveres, ser o guardião e o baluarte da doutrina moral, papel crucial para a manutenção de uma sociedade sadia. Já ao sacerdote cabe a função de ensinar, educar, elevar o senso de cidadania, preservar a prática de bons procedimentos que desenvolvam senso moral superior, mostrar a noção exata do relacionamento com a espiritualidade (prática do bem, amor a Deus e ao próximo).

Faz exatamente oito anos que meu pai nos deixou. Porém, a sua presença é sentida porque ele plasmou a sua alma na minha alma. Na condição de juiz, foi um grande incentivador da justiça. A lembrança mais remota que tenho do meu pai era a sua preocupação em ser justo com os filhos. Sempre trazia um presente ao regressar de uma viagem. Com esse gesto parecia compensar a sua ausência, mas, fazia-nos acreditar que éramos parte do seu mundo. Era sempre um ato de justiça para conosco, por sermos a sua alegria ele nos alegrava. Jamais vi meu pai discordar das medidas corretivas aplicadas pela minha mãe. Também, nunca o vi dar uma contra ordem a qualquer decisão doméstica assumida por minha mãe, quer fosse em relação à administração da casa, quer fosse em relação à educação dos filhos. Na verdade, jamais presenciei uma discussão dos meus pais, nenhuma querela ou discordância. É claro que houve momentos de desacordo, mas, jamais na presença dos filhos. Havia um juiz em nossa casa que esclarecia a doutrina moral, com maior evidência, através do exemplo.

Na função de juiz, fixava em nós princípios morais indispensáveis, especialmente o da cooperação. Por exemplo, sempre na sexta feira, meu pai engraxava os sapatos de todos. Ele gostava de sapados limpos e polidos e, a mim especialmente, chamava para acompanhar aquele ritual de cooperação. Por seu exemplo, aprendi a cuidar dos calçados. Também me incentivava a lavar o carro na sexta feira, para que no sábado, todos pudessem ser transportados sem dificuldades higiênicas. Era um serviço justo, porém, uma aula semanal sobre o cuidado com o patrimônio familiar. Por outro lado, sempre tínhamos roupas elegantes e limpas para vestir, um ato justiça para com os filhos. Meu pai era muito exigente consigo em relação às roupas, e assim o era com o guarda roupa dos filhos.

Na função de Pastor, levava-me para assistir seu trabalho social aos membros da sua paróquia. Quando distribuía roupas e alimentos arrecadados de muitas fontes, os distribuía, sempre aos domingos, reunindo a todos, desde os mais necessitados até os que não eram carentes, estes o ajudavam na distribuição; eu assistia tudo na condição de aprendiz da justiça.

Em casa, minha mãe sempre nos ensinou respeitar o nosso pai com gestos muito educativos. Jamais era servido o almoço, para qualquer pessoa morando em nossa casa, antes da chegada do nosso pai, uma clara demonstração de respeito e justiça com o chefe e o provedor. Também, à mesa, a primeira porção era do meu pai, lições de reverência e mais valia ensinadas sem palavras, onde a hierarquia era demonstrada.

Um fato que marcou minha experiência na infância foi a construção de nossa casa. Meu pai fez um esforço gigantesco para construí-la. Via a sua resiliência no enfrentamento das condições econômicas de um Pastor, o quanto confiava na providência de Deus, e como prosseguia sem saber se concluiria. O resultado foi que tínhamos um teto confortável e digno, o qual permitia uma sensação de segurança familiar e na liderança do patriarca. Meu pai entendia ser justo que nossa família tivesse abrigo sem as oscilações de um teto alugado. Aquela fora uma lição importante para mim, logo que pude comprei uma casa também.

Na condição de sacerdote, meu pai foi insuperável. Ele era um erudito que sempre demonstrou por palavras e atos que a educação é o caminho para a liberdade. Meu pai era formado em Contabilidade, Filosofia e História e Teologia. Além disso, falava inglês e gostava de literatura. Em nossa casa havia uma estante com todos os clássicos da literatura. Isso despertou em mim gosto pelos livros. Embora possuidor de grande conhecimento nas humanidades, era a Teologia que o fascinava. Gostava de escrever sermões e amava estar no ambiente eclesiástico.

Em nossa casa era invariável o culto doméstico diário. Lembro-me da família sentada à volta da mesa das refeições e meu pai lendo a lição da Escola Sabatina e minha mãe os textos bíblicos. Depois, nos sábados, via a forte figura do meu pai fazendo os sermões. Ficava fascinado com o culto e a Escola Sabatina, de modo que ao chegar em casa, depois do almoço, pegava as bonecas da minha irmã e as fazia sentar, como se estivessem na igreja, para que me ouvissem repetir o que havia visto. Nenhuma metodologia é tão aderente e tão eficaz para educar como o exemplo.

O amor do meu pai pelas coisas sagradas, seus posicionamentos, sua disposição em ajudar, seu carinho com as pessoas, seu modo de falar das coisas eternas, são fortes exemplos que jamais desaparecerão e nunca deixarão de ser balizas importantes.

Pessoalmente, fui intensamente impressionado pelos meus pais em relação às coisas espirituais. Sempre as considerei relevantes e imperativas. Por ter essa concepção, sempre que posso incentivo pessoas a enxergarem o valor moral das Sagradas Escrituras. Penso que tenho ajudado muitos a verem mais do que o mundo físico, cujo valor é vertiginosamente menor do que os valores espirituais. Todavia, foi na casa dos meus pais onde aprendi a notar o justo valor das Escrituras. Neste sentido meu pai foi excelente sacerdote.

Muitos jovens de famílias da igreja moraram em nossa casa. Lembro de quase todos. Meus pais educavam e albergavam esses jovens, ajudando-os naquela fase das suas vidas. Eram tratados como filhos. Como consequência, esses jovens ataram laços indissolúveis de amizade e gratidão. Muitos ainda preservam a amizade com os filhos. Pessoalmente, tenho carinho por todos. Agora que a vida já mostrou a mim muito, posso aquilatar o enriquecimento social elevado que meus pais outorgaram aos que puderam privar de um tempo com eles, ou seja, na condição de sacerdote, meu pai foi além da sua própria paternidade, ensinou outros jovens mais o valor das boas práticas.

Hoje as lembranças continuam indeléveis. Depois que amealhei algum saber, meu pai, num dos inesquecíveis momentos de intimidade disse-me: gostaria de ter a sua cabeça, meu filho. Essa frase foi expressa por causa da sabedoria que torna aos seus possuidores humildes. Porém, eu sou nada mais do que o reflexo do meu pai, e neste sentido, somente posso agradecer a Deus por ter sido agraciado com a benção de ter tido o meu pai.

Um comentário:

Márcio Luís Leitão Barbosa disse...

Parabéns professor!

É sempre um prazer ler os teus textos, pela riqueza de ensinamentos, pelo excelente português e pelo estilo elegante.