quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Estado mental duvidoso

Nossa cultura religiosa tem um forte apelo místico quase insuperável. A noção de casa de oração ou casa de Deus é também cenobítica, sendo que para a maioria, o lugar sagrado é cheio de mistérios e suposições sobrenaturais e, em alguns extremismos, não são permitidas mudanças físicas dos objetos e utensílios que estão nos templos. Tudo oriundo da atitude beata contemplativa cristã criada pelo romanismo. O conceito de templo prevê uma arquitetura que impõe atitude quase esotérica, impondo uma atitude de solenidade e medo, muito próprias para o exercício do poder.

O santuário no antigo Israel não era um edifício que simbolizava enigma, mas, um lugar de onde emanavam conhecimento verdadeiro e virtudes que deveriam construir uma sociedade justa. Era um local para ensinar e praticar a justiça, sendo que todos os rituais levavam a esse fim. À época quando Jesus esteve entre os homens, o templo de Jerusalém representava o centro de uma sociedade que gravitava em torno de um clero sacerdotal que deveria ser o bastião da justiça, embora saibamos que assim não era. Todavia, a arquitetura do templo era esplendorosamente revestida de mármore branco, o qual refletia a luz solar, tornando-o um ponto destacado na paisagem e não um local de beatice.

O conceito de que religião é o caminho à construção de uma sociedade justa estava no templo israelita, pois no lugar mais santo estava a lei, ou seja, o texto contendo todos as ideias e os juízos sobre a justiça, conforme Deus.

O romanismo tirou a noção do templo de um centro difusor do conhecimento da justiça, e substituiu por um conceito de local místico, complexo, enigmático, incompreensível e, sobretudo, subjetivo. Tão misteriosa é a religião criada pelo romanismo que somente ao clero é dado o direito de ler e interpretar a Bíblia. Logo, tornou-se uma prática mística ir à igreja. Até a acústica dos templos promove ecos propositais apara que sejam sentidas sensações sobrenaturais. Todas essas coisas são calculadas e montadas para que a subjetividade domine, e assim o clero tenha o controle dos fiéis.

No ambiente evangélico, o misticismo e a subjetividade também são predominantes. Embora os templos sejam menos enigmáticos, e o clero não use roupas suntuosas que introduzem respeito temeroso, há conceitos que são mantidos como não de fácil interpretação. Uma das palavras mais misteriosas e inexplicáveis é o substantivo graça. A graça de Deus é apresentada de forma indecifrável, em razão da atmosfera rarefeita do conhecimento dos conceitos religiosos que estão enraizados no hebraico. Todavia, a graça é todo conhecimento que não pertence ao domínio humano e que, portanto, veio de Deus. Logo, todos podem estudar a palavra de Deus com o firme propósito de aprender o que é a verdade e excluir do seu caminho o pecado. Aliás, a Bíblia foi escrita para que sejam esclarecidos os erros humanos e, como consequência, surja o estado mental do arrependimento e o desejo de experimentar a realidade social bíblica. Vem então a informação de que sair do mundanismo não é possível sem ajuda, então torna-se claro que há necessidade de alguém que ensine a verdade e redima do mundanismo (o salvador), se assim ocorrer, virá o abandono das coisas vulgares e insensatas (o sistema da disputa), ou seja, será estabelecida a paz com Deus.

Todas as situações no âmbito religioso são de ordem prática e não apenas ideal. A prática de atos que desagradam a Deus será substituída por decidida busca pelas boas obras (amor a Deus e ao próximo); se se continua na fé, vai sendo construído um caráter que torna o homem participante da natureza divina, e esse esforço de reconhecer a culpa e buscar a justiça traz a chamada justificação, pois Jesus apresenta seu sangue em favor da pessoa arrependida, diante do tribunal que julga os atos humanos.

O misticismo aparece muito forte quando conceitos bíblicos são evidenciados e as pessoas são forçadas a raciocinar. Uma experiência realizada com crianças oriundas de famílias cristãs mostra tal situação. Um professor explicou a um grupo de crianças que a encarnação de Jesus foi inevitável porque todos os patriarcas e o próprio povo de Israel tinham falhado no ensino e na vivência da justiça. Se haviam falhado, não poderiam ser os exemplos cabais de como viver em justiça, fato que era a parte dos filhos de Deus nas alianças realizadas ao longo das eras. Somente com a encarnação e o nascimento de Jesus, o homem que viveu e ensinou cabalmente a justiça, a humanidade teria um exemplo fiel para olhar e imitar. Se Jesus não tivesse encarnado e nascido, jamais as pessoas saberiam direito o que era viver no mundo, mas, pensando e agindo como um cidadão do reino dos céus.

 Depois de uma hora de explicações sobre o porquê da encarnação de Jesus, o professor pergunta às crianças por que Jesus nasceu? Esperava que os meninos tivessem formado uma ideia mais clara sobre essa dádiva celeste. Porém, a resposta das crianças foi que Jesus nasceu para que pudesse nos salvar. É claro que isso também é verdade. Entretanto, a argumentação utilizada era completamente mística. Claramente o conceito era de salvação sobrenatural. A despeito das explicações práticas e suas consequências, o nascimento de Jesus permanecia na mente das crianças como um evento puramente religioso, sem a noção objetiva da salvação. Veio nos salvar de que? Veio nos salvar do mundanismo vivendo a justiça traduzida em boas obras, com um único objetivo: demonstrar à humanidade que eram escravos do sistema mundano da disputa (trevas), dando-lhes oportunidade de aprender e vivenciar o sistema da cooperação (luz).

Nas comunidades eclesiais cristãs, essa noção pragmática do evangelho não é evidente. Como as igrejas cristãs pretendem o poder temporal, a subjetividade é uma ferramenta essencial. Aos líderes cabe manter os fiéis em estágio mental duvidoso, pois resulta em possibilidade de manobrar seus semelhantes e utilizar da sua força em favor do poder pelo poder. Então, com esta visão, os líderes exacerbam o misticismo tornando o evangelho ininteligível, deixando a membresia sempre confusa.

A Bíblia não é todavia assim inescrutável. Ao explicar sobre a prática da justiça, Moisés escreve (Levítico 19:11-15) da parte de Deus o que segue: “Não furtareis, nem mentireis, nem usareis de falsidade cada um com o seu próximo; Nem jurareis falso pelo meu nome, pois profanarás o nome do teu Deus. Eu sou o SENHOR. Não oprimirás o teu próximo, nem o roubarás; a paga do diarista não ficará contigo até pela manhã. Não amaldiçoarás ao surdo, nem porás tropeço diante do cego; mas temerás o teu Deus. Eu sou o SENHOR. Não farás injustiça no juízo; não respeitarás o pobre, nem honrarás o poderoso; com justiça julgarás o teu próximo”. Onde está o misticismo nas assertivas acima?

De sua parte, o Novo Testamento, (Efésios 4:24-25) nos admoesta dizendo: “E vos revistais do novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça e santidade. Por isso deixai a mentira, e falai a verdade cada um com o seu próximo; porque somos membros uns dos outros”. Nenhum dos conselhos é subjetivo, passível de interpretações pessoais, mas, diretos e insofismáveis.

Por qual razão estamos comentando este assunto? Porque é parte do plano do inimigo das nossas almas manter as igrejas na ininteligibilidade. Os fiéis, embora não entendam, se manterão nas igrejas, investindo seu tempo na esperança de que estando em uma delas, estarão melhor do que não estando em nenhuma. Ali convivem com outros que apostam na mesma ideia. As comunidades não são orientadas a buscar a justiça porque os líderes não compreendem os dois sistemas, o de Deus e o outro. O tempo é gasto em sermões de autoajuda e programas lítero-musicais ou de puro entretenimento que comemoram datas comerciais, e vão vivendo assim, ad infinitum. Produzem algumas liturgias e sacramentos sem, no entanto, saber do que se trata, mas, praticam na esperança de que estejam agradando a Deus, quando na verdade o culto deveria ser uma resposta à bondade e misericórdia de Deus, onde os fiéis iriam louvar aquele que os criou, os mantém e os salvou. A parte mais substancial do culto de adoração é a construção de um caráter semelhante ao de Deus, sendo que a materialização do amor a Deus deveria ser a operação de boas obras em relação ao próximo. No entanto, o inimigo os mantém adormecidos até que chegue à situação em que se darão conta de que “Passou a sega, findou o verão, e nós não estamos salvos” (Jeremias 8:20).

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