terça-feira, 13 de janeiro de 2015

No limite extremo da pressão

Para os cristãos modernos que estão convencidos da chegada dos tempos finais, estudar o comportamento dos descendentes da Abraão, pelo menos, desde a sua saída do Egito até a entrada deles na terra prometida é de fundamental valor. Estamos nós, os atuais cristãos, na mesma jornada, buscando sair do Egito (as tradições humanas às quais a Bíblia chama de mundo), passar pelo deserto e entrar na terra prometida. Assim, a experiência judaica pode nos ensinar o que fazer ou aproveitar, mas, também pode nos indicar como evitar derrotas.

Um dos mais importantes eventos ocorridos no passado foi exatamente a maneira poderosa como saíram e atravessaram o mar Vermelho. Para visualizarmos melhor os acontecimentos e aproveitarmos da experiência é necessário observar  como os acontecimentos estão narrados no livro de Êxodo. As histórias, pelo menos no início do livro, estão narradas em uma estrutura literária chamada de quiasma, na qual o início está repetido no final como se este fora um espelho do início, tendo o clímax no centro.

O episódio da saída do povo de Israel do Egito começa com uma batalha e termina com outra batalha, no centro está a travessia do mar Vermelho. Se nós olharmos com cuidado para a travessia do mar, encontraremos ali um evento vicário. A história dos israelitas está dividida em antes da travessia e depois da travessia. Antes estavam no Egito como escravos sob o domínio de Faraó, depois estavam no deserto (terra de ninguém) sob o domínio de Deus.

É crucial entender o que ocorreu. Por que Faraó tentou reescravizar os israelitas? O Egito era belicamente a nação mais poderosa naquela ocasião. Havia introduzido uma inovação tecnológica que somente estava disponível aos exércitos egípcios: as bigas (carros puxados por cavalos). Tal inovação era arrasadora, nenhuma outra nação tinha como enfrentar os egípcios. Os carros davam enorme velocidade e mobilidade, além de proteção aos soldados. Agora imaginemos, Faraó tomou seiscentos carros e saiu para perseguir os israelitas; se exércitos treinados não suportavam o poder bélico dos egípcios, quanto mais um bando de escravos desorganizados; deste modo, Faraó não tinha dúvidas que poderia reconquistar os hebreus e, consequentemente, partiu para cima.

Os israelitas foram encaminhados por Deus por uma rota que margeava o mar e, nesta condição, estavam no limite extremo da pressão, ou se lançavam no mar ou voltavam ao Egito. Imaginemos o terror do povo ao saber que Faraó os buscava com seiscentos carros. “E aproximando Faraó, os filhos de Israel levantaram seus olhos, e eis que os egípcios vinham atrás deles, e temeram muito; então os filhos de Israel clamaram ao SENHOR.  E disseram a Moisés: Não havia sepulcros no Egito, para nos tirar de lá, para que morramos neste deserto? Por que nos fizeste isto, fazendo-nos sair do Egito?  Não é esta a palavra que te falamos no Egito, dizendo: Deixa-nos, que sirvamos aos egípcios? Pois que melhor nos fora servir aos egípcios, do que morrermos no deserto” (Êxodo 14:10-12). Moisés respondeu dizendo: “Não temais; estai quietos, e vede o livramento do SENHOR, que hoje vos fará; porque aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais os tornareis a ver.  O SENHOR pelejará por vós, e vós vos calareis” (Êxodo 14:13-14). Em outras palavras, Moisés disse ao povo para ficar quieto e não fazer nada porque Deus iria fazer tudo.

Neste episódio, segundo alguns comentadores,  a liderança dividiu-se em quatro grupos. Um grupo disse, vamos nos lançar no mar. Outro grupo disse, voltaremos para o Egito. Outro ainda disse, vamos lutar contra eles. O último disse, vamos gritar e chorar. Para o primeiro grupo que havia dito vamos nos lançar no mar, Moisés respondeu permaneçam firmes e verão o livramento que o Senhor trará. Para o grupo que disse voltemos ao Egito, Moisés afirmou que os egípcios que estavam vendo hoje nunca mais seriam vistos. Para o grupo que disse vamos lutar contra eles, Moisés afirmou que o Senhor lutaria por eles e, finalmente, para o grupo que disse vamos gritar e chorar ele mandou que permanecessem em silêncio.  A batalha contra os egípcios foi um ato divino. Os carros não podiam avançar, pois as rodas quebravam e atolavam, mas, além disso, “o anjo de Deus, que ia diante do exército de Israel, se retirou, e ia atrás deles; também a coluna de nuvem se retirou de diante deles, e se pôs atrás deles.  E ia entre o campo dos egípcios e o campo de Israel; e a nuvem era trevas para aqueles, e para estes clareava a noite; de maneira que em toda a noite não se aproximou um do outro” (Êxodo 14:19-20). Deus então ordena que Moisés estenda as mãos por sobre o mar “e o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite; e o mar tornou-se em seco, e as águas foram partidas” (Êxodo 14:21).

Agora vamos entender o que ocorreu com o mar. Segundo os relatos sagrados o mar ficou dividido e duas paredes de água congeladas verticais dividiram o mar em duas peças. Este fato carrega um importante simbolismo que nos remete a uma antiga cerimonia para celebrar alianças. O Rabino Jonathan Sacks explica em seu livro Exodus que a palavra chave ou o verbo chave nas alianças é cortar. Quando se pretendia fazer uma aliança alguns animais eram divididos ao meio e as partes que entravam em aliança ficavam entre as bandas dos animais. Segundo Sacks, a divisão de coisas normalmente unidas permanecia como símbolo da unificação de entidades (pessoas, tribos, nações) previamente divididas. Tal explicação está relacionada a Gênesis 15:9-18: “E disse-lhe: Toma-me uma bezerra de três anos, e uma cabra de três anos, e um carneiro de três anos, uma rola e um pombinho.  E trouxe-lhe todos estes, e partiu-os pelo meio, e pôs cada parte deles em frente da outra; mas as aves não partiu.  E as aves desciam sobre os cadáveres; Abrão, porém, as enxotava.  E pondo-se o sol, um profundo sono caiu sobre Abrão; e eis que grande espanto e grande escuridão caiu sobre ele.  Então disse a Abrão: Sabes, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos, mas também eu julgarei a nação, à qual ela tem de servir, e depois sairá com grande riqueza.  E tu irás a teus pais em paz; em boa velhice serás sepultado.  E a quarta geração tornará para cá; porque a medida da injustiça dos amorreus não está ainda cheia.  E sucedeu que, posto o sol, houve escuridão, e eis um forno de fumaça, e uma tocha de fogo, que passou por aquelas metades.  Naquele mesmo dia fez o SENHOR uma aliança com Abrão, dizendo: À tua descendência tenho dado esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates”.

No mar Vermelho os israelitas passaram entre duas peças de águas e não de animais, como ratificação da aliança efetuada com Abraão. De acordo com o Rabino Sacks, eles passaram de um domínio para outro, de escravos de Faraó para servos de Deus. Esta experiência é a mesma vivida pelo indivíduo que recebe o batismo de imersão. O seu corpo ao ser mergulhado divide a água em duas peças e, deste modo, é realizada uma aliança com Deus. Ao emergir, ele passou pelo mar, ou seja, saiu do domínio do mundo e entrou no domínio de Deus. Agora no deserto, terra de ninguém, ele está livre para escolher a quem vai servir, ou seja, após o batismo por imersão, uma vez que uma aliança foi realizada com Deus, o indivíduo estará pronto para guardar os mandamentos e não deverá retornar ao Egito. A travessia do mar Vermelho (batismo) é um ato de consolidação de aliança e transferência de possessão, o indivíduo agora é possessão de Deus e não mais de Faraó (mundo). Entrou em novo território não geográfico mas existencial. O que isto significa?

Em Êxodo 17:8-13  está relatada a outra batalha que os israelitas tiveram que enfrentar após a travessia. Leiamos: “Então veio Amaleque, e pelejou contra Israel em Refidim.  Por isso disse Moisés a Josué: Escolhe-nos homens, e sai, peleja contra Amaleque; amanhã eu estarei sobre o cume do outeiro, e a vara de Deus estará na minha mão.  E fez Josué como Moisés lhe dissera, pelejando contra Amaleque; mas Moisés, Arão, e Hur subiram ao cume do outeiro. E acontecia que, quando Moisés levantava a sua mão, Israel prevalecia; mas quando ele abaixava a sua mão, Amaleque prevalecia.  Porém as mãos de Moisés eram pesadas, por isso tomaram uma pedra, e a puseram debaixo dele, para assentar-se sobre ela; e Arão e Hur sustentaram as suas mãos, um de um lado e o outro do outro; assim ficaram as suas mãos firmes até que o sol se pôs. E assim Josué desfez a Amaleque e a seu povo, ao fio da espada.

Conforme o relato, Deus não lutou, desta vez, pelo povo, mas, comandou que lutassem. Antes da travessia Deus lutara, mas, agora, o povo devia lutar por si. O que nos chama atenção é que o líder Moisés foi para o outeiro com a vara de Deus nas mãos. Enquanto permanecia com as mãos levantadas, Israel prevalecia, se baixava as mãos, Ameleque prevalecia. Tal descrição nos leva a supor ter havido mais milagres, no entanto, não havia milagres nas mãos de Moisés levantadas, apenas suas mãos apontavam na direção dos céus onde os israelitas deveriam colocar seu olhar e seu coração. A diferença aqui é que Deus não atuou externamente modificando a natureza atolando os carros e cavalos, abrindo o mar Vermelho, tal qual fizera na primeira batalha antes da travessia, mas, enquanto os israelitas dirigiam seu olhar e suas mentes para cima, alcançavam força interior e fé para prevalecer. Aqui vemos uma clara transição no formato de atuação de Deus; ocorreu uma mutação no interior dos israelitas, mostrando a grandeza da presença divina no interior do homem. Os israelitas não foram vencedores porquanto Deus lutara por eles, mas Deus deu-lhes força para lutar por si mesmos. Deus não estava entre, mas dentro. Esta é a mudança crucial que ocorre quando atravessamos o mar, ou seja, nos batizamos. Deus deseja que lutemos nossas próprias batalhas, não que estejamos abandonados, apenas que ele estará conosco onde e quando estivermos nele. Será necessário o desenvolvimento de qualidades tais como coragem, confiança, determinação, vontade as quais nos permitirão encontrar nossa superioridade como seres criados à imagem de Deus. (Este texto está baseado no capítulo “The turning Point” do livro Exodus do Rabbi Sir Jonathan Sacks).

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