domingo, 28 de setembro de 2025

A simplicidade complexa da santidade

 

Israel estava prestes a atravessar o Jordão e entrar na terra prometida, então, Josué deu uma ordem: “Santifiquem-se, porque amanhã o SENHOR fará maravilhas no meio de vocês” (Js 3:5). Razão dessa ordem é que, semelhantemente como na ocasião do Sinai, quando Deus iria transformar uma multidão de peregrinos em nação constituída, esse era outro momento de transição e de grande manifestação do poder divino. Antes de qualquer intervenção sobrenatural, Deus chama o povo a um preparo espiritual. A santificação aqui incluía práticas de purificação cerimonial (como lavar roupas, abster-se de impurezas rituais, Ex 19:10-15), mas ia além do aspecto externo.

O verbo hebraico qadash significa “separar, consagrar, tornar santo”. A ordem de Josué visava separar o povo das distrações comuns, chamando-os a dedicar-se totalmente a Deus. Ou seja, antes de ver as maravilhas divinas, era necessário alinhar a vida com a vontade do Senhor.

Na lógica bíblica, a santificação é sempre pré-condição da presença manifesta de Deus. Algo semelhante ocorreu:

·   no Sinai: “Santifica o povo hoje e amanhã, e lavem as suas roupas” (Ex 19:10), antes da revelação da lei;

·      no tabernáculo: a glória do Senhor só encheu o santuário após a consagração (Lv 9:6, 23-24);

·    no Novo Testamento: Jesus orou “Santifica-os na verdade, a tua palavra é a verdade” (Jo 17:17), antes de enviar os discípulos em missão.

A ordem ensina que não há maravilha de Deus sem preparação do coração humano. O povo não poderia confundir o poder divino com magia ou espetáculo: as maravilhas são resposta a um coração consagrado. A santificação é o reconhecimento de que a iniciativa é de Deus, mas a disposição é do homem.

Segue-se que a santificação não é ritual externo, mas entrega interior. Em Hebreus 12:14, o apóstolo Paulo afirma que santificar-se significa negar o eu e promover a paz: “Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor.” A lógica permanece: se desejamos ver a atuação de Deus em nossa vida, devemos nos colocar em estado de consagração, separação do pecado (competição) e dedicação ao serviço divino. Logo, a ordem de Josué significa que a manifestação de Deus é precedida por um chamado à preparação espiritual. A santificação (promoção da paz) é a chave que abre espaço para que as maravilhas de Deus não sejam apenas vistas, mas compreendidas e vividas como parte do Seu plano.

Biblicamente devemos — entender a santificação como paz entre irmãos. O texto mencionado (Hebreus 12:14): “Segui a paz com todos, e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” mostra que o autor não separa os dois elementos, mas os coloca lado a lado como realidades interdependentes. A paz com o próximo não é opcional, mas parte integrante da santificação.

Além disso: 1 João 4:20“Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso.” Mateus 5:23-24 — Jesus ordena reconciliar-se com o irmão antes de oferecer a oferta no altar. Romanos 14:19“Busquemos, pois, as coisas que contribuem para a paz e para a edificação de uns para com os outros.”

Os textos acima mostram que não existe santidade autêntica sem reconciliação e amor fraternal.

A santificação é separação para Deus, mas isso não é isolamento individualista; ela se manifesta em relacionamentos restaurados. Se Deus é amor (1Jo 4:8), ser separado para Ele implica refletir Seu caráter de amor, especialmente no trato com os irmãos. O pecado rompeu não só a relação com Deus, mas também com o próximo (Gn 3:12; 4:8). Logo, santificação implica reconstrução da paz.

Seguem alguns exemplos bíblicos sobre o entendimento bíblico da lógica da santificação: Moisés no Sinai: após adorar a Deus, ele intercede pelo povo (Êx 32:30-32). A santificação de Moisés se expressa em amor ao próximo. O tabernáculo: o culto incluía ofertas de paz (shelamim), símbolo da comunhão restaurada entre Deus, ofertante e comunidade (Lv 3). Na Santa Ceia, que simboliza oferta pacífica, ocorre a restauração da harmonia com Deus e com o próximo: é o Céu promovendo santificação e insistindo conosco para abraçá-la. Jesus: em João 17, Ele ora pela santificação dos discípulos (“Santifica-os na verdade”), e logo depois pede pela unidade entre eles (“para que sejam um”).

Podemos dizer que santificação não é apenas vertical (com Deus), mas também horizontal (com os irmãos). Buscar pureza pessoal sem cultivar paz é uma santificação incompleta. A vida cristã só é plena quando a separação do pecado se traduz em comunhão restaurada. Portanto, a paz entre irmãos é parte essencial da santificação. Não se trata de dois caminhos paralelos, mas de uma mesma estrada com duas faces: comunhão com Deus e comunhão com o próximo.

A Simplicidade da Santidade é estar em relacionamento — com Deus e com o próximo. Jesus resumiu em dois mandamentos simples: amar a Deus e amar ao próximo (Mt 22:37-40). João reafirma: “Quem ama é nascido de Deus e conhece a Deus” (1Jo 4:7). Ou seja, o fundamento da santidade é claro: relacionar-se corretamente.

A Complexidade da Santidade se mostra porque relacionamentos são dinâmicos: exigem diálogo, perdão, paciência, reconciliação. Exigem ligações múltiplas: cada pessoa está conectada a muitas outras, como numa rede. Um elo rompido afeta toda a estrutura. Há também um custo pessoal: amar não é só sentimento, mas sacrifício (Jo 15:13).  Assim, a santidade envolve processos de amadurecimento, renúncia e constante ajuste nas ligações.

A “Simplicidade Complexa” está na possibilidade de ver a santidade como uma teia viva de relacionamentos: É simples na raiz (um só princípio: amor). É complexa no desdobramento (inúmeros vínculos a serem nutridos e mantidos). Essa é a lógica de Hebreus 12:14: Buscar santificação (ligação com Deus). Buscar paz (ligação com o próximo). Ambos são inseparáveis. A santidade é simples no princípio (amar), mas complexa no vivido (amar em rede, em vínculos concretos).

 

Um comentário:

Ezequiel Monteiro disse...

Análise interessante. Gostaria de enfatizar que neste processo é o próprio Deus quem nos santifica. “Portanto santificai-vos, e sede santos, pois eu sou o Senhor vosso Deus. Guardai os meus estatutos, e cumpri-os. Eu sou o Senhor, que vos santifico (Levítico 20: 7-8). Como já dito: a santificação jamais acontecerá alienada de Deus. O que Deus pede ele mesmo dá - nossa dependência e submissão a Deus precisa ser plena; sem ressalvas.