Quando minha mãe completou 80
anos fez uma observação que não esqueci: “a vela está apagando, passou muito
rápido”. Agora estou quase chegando aos 70 anos, a sensação que tenho é de que
passou muito rápido.
Não imaginava que a velhice
chegaria. Chegou. Começo a sentir os seus efeitos quando faço algum esforço que
exige dos músculos. Mentalmente não sinto a idade, pois ainda vivo buscando
alguns empreendimentos que demandam bastante energia. Porém, terei que pensar,
a curto prazo, na minha aposentadoria. Nunca pensei que esse momento chegaria.
Chegou. Ainda tenho muita energia e vontade de realizar.
Minha trajetória de vida não
obedeceu aos padrões dos jovens da minha geração. A maioria deles estudou
medicina, direito ou engenharia. Eu fiz biologia, ciência que naqueles idos
ainda engatinhava no Brasil e muito particularmente na região norte. Meu pai
estremeceu por causa da minha escolha. Havia feito vestibular para medicina,
mas resolvi cursar biologia sem pensar em arrependimento. Depois da graduação
fiz o exame de seleção para o mestrado. Passei por uma pesada sabatina; dois
dias de provas cobrando conhecimentos de física, química, português,
matemática, genética, inglês, biologia. Fui aprovado em primeiro lugar e saí da
minha cidade (Belém, Pará) para passar dois anos em Manaus, Amazonas, no
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia -INPA. Meus planos não contemplavam
a permanência em Manaus, mas, a instituição ofereceu uma posição de pesquisador
e, após uma luta pessoal resolvi aceitar. Após minha defesa de dissertação no
mestrado (aprovado com nota 10 e com louvor e distinção), comecei a buscar o
doutorado. Veio uma excelente oportunidade para estudar na Universidade de São
Paulo- USP. Passei excelentes quatro anos. Após a defesa da tese doutoral (também
aprovado com nota 10 e com louvor e distinção), regressei a Manaus com a
sensação de que deveria contribuir na Amazônia (na ocasião não havia ainda 1000
doutores na região) e não em outro lugar, porque não seria eu mais um a
praticar estelionato, uma vez que estudei em escolas públicas, portanto, pago
pelo povo amazônico, sendo minha obrigação retribuir ao esforço dos
contribuintes locais.
Se passaram quase 40 anos desde que
retornei do doutorado, e empreendi a construção de uma vida quer como pessoa,
quer como profissional. Não tenho nenhum arrependimento em razão do meu
investimento na Amazônia. Obtive muitos ganhos pessoais considerando que cresci
como pessoa, conquistei respeito dos meus amigos, além de ter experimentado
momentos de fortes embates e realizações que forjaram em mim tirocínio e
resiliência. O tempo transcorrido foi o grande professor e educador que ensinou
lições importantes, aprofundando o polimento, aplicando camadas de conhecimento
que, talvez, não estariam tão disponíveis em outra situação.
Adquiri conhecimento religioso
muito importante, o qual me proporciona enxergar meus erros e corrigi-los.
Cultura religiosa é imprescindível para formação ética e conduta moral. Quanto
mais aprendemos sobre Deus, mais vemos nossas incoerências, como é enganoso o coração,
percebemos nossa teimosia, nossa insensatez. Percebi que a religião melhora a vida
social, proporciona sentir mais o valor de uma vida, das amizades, do grande
privilégio da existência nas cidades, do valor da cooperação e principalmente
compreender que a sociedade é muito maior que a soma das pessoas.
Profissionalmente, o INPA deu-me
muitos privilégios. Pude liderar uma parcela significativa de setores
importantes adquirindo visão privilegiada sobre aspectos sensíveis do labor
científico. Por estar no INPA, pude servir outras instituições federais como
consultor. Uma delas, a Financiadora de Inovação e Pesquisas (FINEP), órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação (MCTIC) , deu-me grande oportunidade de conhecer o sistema
de Ciência e Tecnologia (C&T) brasileiro. Viajei por todas as regiões do
nosso país conhecendo investimentos e sentindo pessoalmente as dificuldades de
planejamento, execução e manutenção de projetos científicos e de
desenvolvimento. Percebi as diferenças regionais no que tange as percepções de
prioridades, a maturidade profissional, capacidade de liderança e especialmente
como os governos estaduais enxergam C&T. Agradeço muito à FINEP por esse
aprendizado. Talvez poucos tenham tido esse aprimoramento.
No quesito pioneirismo, fui o
responsável pela implantação e consolidação do departamento de Entomologia do
INPA, auxiliei no primeiro planejamento estratégico institucional quando atuei
como assessor especial do diretor do INPA e logo depois como coordenador de
Ações Estratégicas, ocasião em que implantei os projetos institucionais que
mudaram a administração científica do INPA. Mais tarde atuei como coordenador
de Relações Institucionais, sendo em seguida convidado a coordenar toda área de
capacitação institucional, onde reestruturei todo o sistema de pós-graduação
implantando informatização de procedimentos e atualização das secretarias dos
cursos. Após, fui chamado para ajudar na Coordenação de Biodiversidade, uma das
quatro diretorias de área resultantes da modernização administrativa
institucional que transmudou treze departamentos em quatro grandes setores científicos
visando o trabalho em grupos, sendo o maior deles a Coordenação de Biodiversidade,
correspondendo a 60% da área de pesquisas do INPA, a qual implantei e
consolidei. Passei por muitas comissões importantes de planejamento
institucional, mas atualmente estou membro do Conselho Técnico e Científico do
INPA (CTC), a instancia consultiva mais alta, cuidando das políticas que
norteiam a instituição, minha última contribuição administrativa.
De outro lado, no final dos anos
90 fui cedido ao Ministério do Meio Ambiente, para exercer o cargo de gerente
do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular -PROBEM, sendo este programa o
responsável pela implantação do Centro de Biotecnologia da Amazônia – CBA.
Trabalhei intensamente na construção da base física do CBA, um elegante
edifício que deveria desenvolver um polo de bioindústrias, bem como a criação
de um ambiente regional para bionegócios, alternativa consistente para o
fortalecimento de uma vertente econômica baseada na maior riqueza amazônica, a
floresta. Tudo estava planejado para agregação de valores à floresta em pé.
Infelizmente, com a mudança política na esfera federal e a entrada de um
governo de esquerda, a possibilidade de utilização da riqueza natural tornou-se
inviável, pois criaram-se mecanismos para inibir qualquer possibilidade de
acesso à biodiversidade, matando iniciativas privadas e estatais. Esse atraso
foi causado pela visão nacionalista canhestra, pelo discurso neocomunista que
saiu da boca de políticos e acadêmicos da Amazônia e do Brasil, taxando de
biopiratas as empresas nacionais e estrangeiras, assim como pesquisadores futuristas
que se dispuseram a utilizar os recursos naturais amazônicos, o que poderia ter
modificado o mercado e exportado bens de consumo de alto valor ao invés de
exportar commodities. Falsos brasileiros impuseram à Amazônia mais 20 anos de
subdesenvolvimento e atraso.
Os anos 90 foram de muita
atividade. Na companhia de alguns amigos idealistas, fundamos a Fundação
Vitória Amazônica – FVA, voltada para educação ambiental, e decidiu-se que seu
foco territorial seria a bacia do rio Negro. Éramos um grupo muito especial
formado por empresários, cientistas, professores universitários, profissionais
liberais e estudantes de graduação e pós-graduação. Logo começaram as
atividades e a FVA consolidou-se com auxílio de outras fundações, alcançando
bastante respeito local e mesmo internacional. Um dos empreendimentos mais
auspiciosos daquele início foi a realização do plano de manejo do Parque
Nacional do Jaú, uma área muito valiosa, mas que até então estava apenas no
papel. A partir da vivência com o Parque, foi-se tomando consciência da
necessidade de modificação da legislação sobre parques e travou-se uma
frutífera batalha com as autoridades sobre a manutenção de populações
tradicionais dentro dos parques, mas até o momento, pouco progresso pode ser contabilizado.
Tive o privilégio de presidir o Conselho da FVA por oito anos. Ali travei
conhecimento com vários homens e mulheres importantes no Amazonas, pessoas que
me ajudaram a compreender melhor esse tão rico território. Também durante minha
passagem pela FVA, foi realizada gestão junto à prefeitura de Manaus, para
transformar uma área preservada no bairro do Parque Dez no que hoje se conhece
como Parque do Mindú. A FVA ajudou na vinda de uma réplica de um navio viking a
Manaus, no período da famosa reunião Rio 92. Nesse barco estavam crianças de
muitos países que trouxeram pedras de suas terras para lastrear o navio, mas
intencionalmente, essas pedras serviram como matéria prima à construção de um
monumento comemorativo à visita do navio a Manaus, o qual está na entrada do
Parque do Mindú. Dentro do referido monumento existem capsulas com cartas
escritas pelas crianças que estavam no navio, mas também por crianças ao redor
do mundo, cujo assunto era a preservação ambiental. Por um período de quase 10
anos a FVA fez cooperativamente a gestão do Parque do Mindú com a Prefeitura de
Manaus. Sinto alegria de ver um legado físico que resultou da atuação do grupo
que iniciou a FVA.
De volta ao INPA, gostaria de
acrescentar que ajudei a realizar algumas mudanças estruturais importantes. No
início dos anos 1990, o Dr. José Seixas Lourenço assumiu a direção geral do
INPA e, como era do seu feitio, promoveu a mais importante modificação
estrutural que a instituição experimentou. Pela primeira vez fora realizado um
planejamento estratégico. Era um momento muito alvissareiro, considerando que o
Banco Mundial estava patrocinando o Programa Piloto para a Proteção das FlorestasTropicai (PPG-7), com recursos para
melhorar infraestruturas de pesquisas no âmbito do Ministério da Ciência e
Tecnologia- MCT. O INPA fora um dos institutos contemplados com recursos e,
consequentemente, iniciaram-se as tratativas para a implantação do Programa do PPG-7.
Naquele momento fui chamado a ocupar a chefia do gabinete de implantação do
programa, com a tarefa de reorganizar a estrutura de pesquisas, além de inserir
o escritório de gestão do referido programa.
Do planejamento estratégico sacou-se
a necessidade de criar um novo paradigma para o gerenciamento das pesquisas,
criando-se então os Programas de Pesquisas Institucionais – PPI, que deveriam
funcionar de forma matricial e multidisciplinar, buscando responder perguntas
científicas fundamentais. Assim, os projetos eram pensados para atuação de
grupos multidisciplinares de pesquisas, uma inovação que somente algum tempo
depois tornou-se como que obrigatório no panorama científico mundial. Não se
pensou em exportar esse modelo, mas a percepção da complexidade dos problemas estava
demandando da comunidade científica mundial o afastamento da forma disciplinar
de fazer pesquisa e a aproximação do desenho multi e transdisciplinar, uma
forma mais eficaz de gerar conhecimento. No caso do INPA, participei de forma
decisiva para o modelo acima, pois estava como responsável por fazer surgir um
novo paradigma. Senti como foram importantes os anos passados na Universidade
de São Paulo - USP, em contato com mestres muito sábios que incentivavam a
leitura de obras básicas do pensamento humano. Como foi importante estar num
ambiente onde se respirava vanguarda, tal qual era a USP nos anos 1980. No caso do INPA, obviamente, a comunidade
científica foi coesa em discutir o modelo e por fim implantá-lo. Para o MCT, o
INPA foi a primeira instituição a apresentar uma agenda de pesquisas. Por esse
motivo, ficou bem mais fácil conseguir aporte financeiro e discutir prioridades
com a área financeira do MCT.
Entre os anos 2010 e 20013, o
INPA passa outra vez por nova modificação estrutural e orgânica para alcançar
nível mundial em pesquisa científica. Como já explicado acima, as treze
Coordenações de Pesquisas existentes foram reagrupadas em quatro coordenações
que atuavam como diretorias de áreas. Dentro das coordenações foram alocados
grupos de pesquisas que funcionavam como as unidades básicas de labor científico.
Essa nova organicidade foi pensada para que a transdisciplinaridade fosse
provocada e os resultados pudessem dar à luz trabalhos de maior relevância com
níveis de generalizações amplos. Até 2013 trabalhou-se forte para que a
mentalidade de grupos fosse cristalizada. O modelo assumido pelo INPA também
foi uma inovação para o sistema de gerenciamento científico no Brasil, sendo
que o agora Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação- MCTI, tomou o INPA
como modelo para outras instituições. Todavia, veio a periódica troca de
diretor. A pessoa que assumiu em 2014 não fez uma leitura correta da situação
(vale dizer que ele nem conhecia o INPA) e, empreendeu uma gestão completamente
sem interesse nas conquistas anteriores. Apenas manteve funcionando o que encontrou
sem aportar nenhuma novidade ou consolidar o que estava andando. Findou o seu
período de gestão de forma patética solicitando sua exoneração antes da posse
do novo diretor, uma forma pouco corajosa de se livrar de um grande problema.
O modelo de pesquisas em grupos
não foi também bem compreendido pelos pesquisadores locais. A razão é que a
geração atual não fora treinada para a transdisciplinaridade. Preferiram persistir
produzindo trabalhos onde as coautorias são pouco buscadas. Atualmente, os
grupos apenas existem como mera formalidade; não há procura de parcerias entre
próprios membros dos grupos. Perderam-se quatro anos preciosos nos quais
poderíamos ter avançado mais na transdisciplinaridade, caso a direção tivesse
buscado compreender a essencialidade da organicidade que encontrou.
Não poderia deixar de relatar
onze anos vividos na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), entre os anos
2000 e 2011, lecionando no Programa de Pós-graduação em Biotecnologia e na
graduação para Escola Superior de Ciências da Saúde.
O Programa de Pós-graduação em
Biotecnologia foi pensado por causa do Centro de Biotecnologia da Amazônia
(CBA), para suprir a necessidade de líderes locais. Na época, o governo federal
contratou uma Organização Social (OS) chamada BIOAMAZÔNIA para executar o
PROBEM (explicado acima). Naquele então, eu prestava consultoria à OS para ajudar
na montagem de cadeias produtivas regionais e, por isso, fui convocado para
auxiliar na concepção e implementação do programa de pós-graduação. O lócus preferencial
deveria ser a UEA, uma vez que o envolvimento do governo estadual com o CBA precisaria
ser promovido. Assim pensado, assim executado. Fiz parte da primeira comissão
para admissão de alunos ao programa. Atuei também como docente e como membro do
Conselho do programa.
Na graduação fui admitido após um
concurso de títulos promovido pelo governo estadual. Minha opção foi a Escola Superior
de Ciências da Saúde, onde permaneci por onze anos lecionando Metodologia da
Pesquisa Científica para os cursos de Medicina, Odontologia e Enfermagem. O período
ali despendido trouxe-me muitos dividendos, principalmente o privilégio de entreter
convívio com alunos muito jovens e poder influenciá-los. Alguns alunos, pude verificar,
continuaram seus estudos de pós-graduação por causa do que lhes aconselhava.
Tal desdobramento é uma recompensa excelente. Modificar pessoas tornando-as
melhores é o dever de todo adulto. Porém, o professor pode exercer esse mister
com maior amplitude. Na graduação conheci muitos outros professores que se
tornaram bons amigos, os quais guardo no lado esquerdo do peito.
Minha caminhada ainda está em
processo, pude realizar muitas tarefas importantes até mesmo participar de
reuniões internacionais com vários organismos e até em reuniões da Organização
do Tratado de Cooperação Amazônica – OTCA, além de ter participado de cinco missões
diplomáticas lideradas pelo Ministério das Relações Exteriores, a países sul-americanos.
Nessas ocasiões é inevitável sentir a força de liderança exercido pelo Brasil.
Temos uma obrigação com nossos vizinhos. O seu desenvolvimento é essencial para
manter essa liderança e o fortalecimento das relações sul-sul. Embora já esteja
pensando na aposentadoria, ainda me sinto capaz de oferecer minha ajuda.
Meu futuro ainda está em
construção, embora eu tenha consciência do tempo. Estou como a criança que
ganha uma boa quantidade de doces e passa a comê-los com sofreguidão. Mas
quando se dá conta que está a terminar, passa a saborear um por um sentindo o
prazer de cada doce. Assim viverei os anos que me restam.
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