A carte de Paulo aos colossenses é um repto
importante para igreja atual. Para entender bem Colossenses 2, ajuda muito ler
o capítulo como o “coração” de uma carta escrita para proteger a igreja da
troca de Cristo por um pacote religioso/filosófico.
O contexto
histórico e pastoral ajuda a compreender a preocupação do apóstolo. Colossos
era uma cidade da Ásia Menor (atual Turquia), numa região culturalmente
misturada (judeus + gentios + filosofias helenistas). A igreja ali parece ter
sido evangelizada por Epapras (Cl 1:7–8), e Paulo escreve (provavelmente preso)
porque chegou até ele a notícia de um ensino que ameaçava o centro da fé. O
problema não era “imoralidade escancarada”, mas uma “espiritualidade avançada”
que, na prática, diminuía a suficiência de Cristo.
O capítulo
2 vem logo após Paulo estabelecer duas bases: Quem Cristo é (Cl 1:15–20):
supremacia do Filho, plenitude, reconciliação. O “mistério” revelado (Cl
1:26–27): Cristo em vós, especialmente entre os gentios. Aí ele entra no
capítulo 2 dizendo que luta para que a igreja tenha plena certeza e não seja
“enganada” por discursos persuasivos (Cl 2:1–5).
Qual era o “erro” que Paulo enfrenta?
O texto
sugere um sincretismo (mistura) com três traços: (a) Pressão
judaizante/ritual; comida e bebida, festas, lua nova e sábados, linguagem
de “circuncisão” (Paulo ressignifica em Cristo). (b)
Ascetismo e regras rigorosas; “não manuseies, não proves, não toques” (Cl
2:21) e aparência de “sabedoria” e “humildade”, mas sem poder real contra a
carne (Cl 2:23). (c) Misticismo/angelolatria; “culto dos anjos” e pretensas “visões” (Cl 2:18), isto sugere uma busca
de “camadas espirituais” além de Cristo. Em resumo, um sistema que prometia plenitude
espiritual por meio de práticas, regras e mediações — e não pela união com
Cristo.
Há uma
linha de raciocínio em Colossenses 2 (o fluxo do capítulo). Pense no
capítulo como quatro movimentos: 1) Cl 2:1–5 — O alvo pastoral. Paulo quer que
a igreja tenha consolo, unidade e convicção para não cair em “argumentos
plausíveis”. 2) Cl 2:6–10 — A tese
central: “Assim como recebestes Cristo… andai nele, enraizados e edificados
nele.” E então: “nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade” e “nele
estais completos”. Isso é dinamite contra qualquer proposta de “Cristo + algo”.
3) Cl 2:11–15 — O que Cristo já realizou por nós. Paulo descreve a obra
completa: “circuncisão” em Cristo (nova realidade, não rito como base de
aceitação), união com Ele na morte/ressurreição (baptismo como sinal), perdão, cancelamento
da “cédula”/dívida, vitória sobre poderes (triunfo). Ou seja, não falta nada
que precise ser completado por um sistema paralelo. 4) Cl 2:16–23 —
Consequências práticas. Não deixem ninguém vos julgar por comida/bebida/dias
(Cl 2:16–17): sombra vs corpo (realidade em Cristo). Não se
deixem desqualificar por angelolatria/ascetismo (Cl 2:18–19): “não retêm a
Cabeça”. Não se submetam a regulamentos como se fossem a essência da vida
espiritual (Cl 2:20–23).
Então, o
contexto de Colossenses 2 é este: uma igreja gentílica sendo pressionada a medir
maturidade espiritual por observâncias, regras e mediações “superiores”, em vez
de permanecer na suficiência de Cristo e na vida “enraizada” nele.
Por isso Paulo não está “atacando disciplina”
nem “atacando santidade”. Ele está atacando substitutos de Cristo e tribunais
religiosos que fazem a comunidade sair da Cabeça.
Em Colossenses 2, “sabedoria de Deus” não é
“inteligência religiosa” nem “sofisticação filosófica”. É Cristo como a
revelação do Pai e como o modo divino de salvar e sustentar a vida cristã.
Paulo contrapõe duas “sabedorias”: a que vem “segundo Cristo” e a que vem
“segundo tradição de homens”.
A tese
central é que a sabedoria está concentrada em Cristo. Paulo diz que seu alvo é
que a igreja conheça “o mistério de Deus, Cristo, em quem estão escondidos
todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Cl 2:2–3).
Isso significa que a “sabedoria” de Deus não
está espalhada em camadas (anjos, regras, técnicas espirituais), mas está no
Filho, especialmente na sua encarnação e obra. E ele dá a razão: “nele habita
corporalmente toda a plenitude da divindade e nele estais completos” (Cl
2:9–10), ou seja, Deus decidiu “colocar peso” (corporalmente) na revelação. Não
é um Deus abstrato; é Deus em Cristo.
Conforme podemos
ver a sabedoria de Deus aparece como suficiência: “Cristo + nada”. O problema
em Colossos era um pacote de “complementos”: filosofia e tradição humana (2:8),
ascetismo e regras (“não toques…”) (2:20–23), culto de anjos e visões (2:18), calendário
e julgamentos religiosos (2:16–17).
A sabedoria divina, para Paulo, é não
precisamos de “Cristo +” para ter plenitude. Qualquer sistema que prometa
“nível superior” fora de Cristo é, na prática, uma negação da suficiência do
Salvador.
Paulo torna
visível que a sabedoria de Deus é a obra objetiva da cruz aplicada a nós. Em
2:11–15 Paulo mostra o “conteúdo” dessa sabedoria: transformação interior (a
“circuncisão de Cristo” – 2:11), união com Cristo na morte e ressurreição
(2:12), perdão real (2:13), cancelamento da dívida (2:14), triunfo sobre
poderes espirituais (2:15). Isso é sabedoria porque resolve o problema no nível
certo: culpa, morte, escravidão e poderes — coisas que nem filosofia, nem
ascetismo, nem ritual conseguem vencer.
A sabedoria
de Deus tem uma forma prática de agir mediante o enraizamento, a gratidão e o crescimento
orgânico. Depois da doutrina, Paulo descreve a forma de viver sabiamente: “andai
nele, enraizados e edificados” (2:6–7), “confirmados na fé” (2:7), “transbordando
em ações de graças” (2:7), “retendo a Cabeça”, de quem o corpo cresce (2:19). A
imagem é proposital: sabedoria divina = vida orgânica. A falsa sabedoria é
artificial, tem “aparência” (2:23), mas não tem seiva.
A sabedoria
de Deus rebaixa o ego religioso. Paulo ironiza o “culto voluntário” e a
“humildade” aparente (2:18, 23). Isso é crucial pois muita coisa “parece”
sabedoria porque disciplina o corpo e impressiona pessoas, mas pode ser só ego
sofisticado.
A sabedoria de Deus, ao contrário, produz humildade
real (porque tudo vem de Cristo), liberdade do julgamento humano (2:16), foco
na Cabeça (2:19), poder verdadeiro contra a carne (não só aparência de poder)
(2:23).
Em Colossenses 2, a sabedoria de Deus é Cristo
suficiente: Deus se revelou “corporalmente” no Filho e salvou plenamente na
cruz; por isso a vida cristã cresce por enraizamento em Cristo, não por
“complementos” humanos.
Colossenses 2:14 abre uma discussão que tem
alimentado interpretações equivocadas sobre as sombras do Antigo Testamento e o
corpo ou a substância que é Cristo no Novo Testamento. Paulo está se referindo ao
que foi “cravado na cruz”, aquilo que ele chama de “escrito”/ “cédula”
(χειρόγραφον, cheirographon) — um termo usado para registro de dívida, uma
espécie de documento que atesta que alguém deve algo.
O que, exatamente, esse “escrito” representa?
Pelo contexto (Cl 2:13–15), Paulo descreve
três coisas que Cristo fez: Perdoou as transgressões (v.13); cancelou o
registro da dívida que era “contra nós” e “nos era contrário”, “removendo-o do
meio e cravando-o na cruz” (v.14); triunfou sobre os poderes (v.15).
Então, o “cravado na cruz” é, principalmente o registro da nossa culpa/débito diante de Deus. É a ideia
de que havia um documento acusatório: a nossa dívida moral (culpa real), com
suas implicações de condenação. Na cruz, Deus não “faz de conta” que não existe
culpa; Ele a trata de modo justo, cancelando a dívida por meio do sacrifício de
Cristo. Paulo diz que esse “escrito” estava “em ordenanças/decretos”. Isso
aponta para a dimensão legal da acusação, aquilo que nos colocava como réus e
nos condenava.
Aqui é importante o equilíbrio: não significa
que Deus “pregou na cruz” a vontade moral de Deus (o padrão de
justiça/santidade). Significa que Ele pregou na cruz a condenação que o pecado
produzia contra nós — o “documento” que nos denunciava e nos deixava sem saída.
O que NÃO foi “cravado na cruz” (para evitar
confusão)?
Não é
“Cristo aboliu toda lei e agora não existe mais padrão moral”. Paulo, em outras
cartas, deixa claro que o evangelho não anula a santidade; ele salva e
transforma.
Por que Paulo usa a imagem “cravado na cruz”?
Porque é uma imagem de anulação pública: como
se o “papel da acusação” fosse pregado ali e declarado encerrado. E isso se
conecta com o verso 15: a cruz, que parecia derrota, vira triunfo (Cristo
desarma o acusador e os poderes). Foi cravado na cruz o registro da nossa
dívida/culpa e sua condenação legal contra nós — removido porque Cristo pagou e
venceu. O texto diz que foi cravado o “escrito/registro de dívida” (um
documento acusatório contra nós) — isto é, a nossa culpa e condenação que o
pecado produzia. Paulo não usa a palavra “sábado” nesse verso.
Onde entram os “sábados” em Colossenses 2?
Os “sábados” aparecem em Colossenses 2:16–17,
num outro assunto: “ninguém vos julgue… por festa, lua nova ou sábados… porque
isso é sombra… mas o corpo (a realidade) é de Cristo”. Aqui Paulo está tratando
de julgamento religioso baseado em observâncias do calendário cúltico.
A expressão “festa – lua nova – sábados” é uma
fórmula típica para falar de observâncias do calendário (anuais, mensais e dias
de descanso associados). Nesse quadro, os “sábados” são entendidos muito
naturalmente como os “sábados” cerimoniais (dias de descanso ligados às
festas), por exemplo em Levítico 23: 1º e 7º dia dos Pães Asmos
(descanso/“santa convocação”); Pentecostes (descanso/convocação); Trombetas; Dia
da Expiação (“sábado de descanso”); Tabernáculos (1º e 8º dia). Esses dias são
claramente tipológicos (sombras) porque estavam amarrados ao sistema ritual e
às festas que apontavam para Cristo.
Um detalhe importante: o AT distingue as
solenidades festivas “além dos sábados do SENHOR” (Lev 23:37–38), sugerindo que
nem todo “sábado” citado em listas festivas é o sábado semanal do Decálogo.
Logo, o que foi cravado na cruz foi o registro
acusatório da nossa dívida/culpa, não “sábados”. Sábados como sombra (Cl
2:16–17) são discernidos no contexto do calendário de festas, o sentido mais
forte é de sábados cerimoniais/festivos usados como critério de julgamento
religioso.
Em Colossenses 2, Paulo descreve um tipo de
“julgamento” que não é o discernimento moral bíblico, mas um tribunal religioso
que usa marcadores externos e preceitos humanos para medir espiritualidade — e,
assim, desloca Cristo do centro.
Paulo cita explicitamente três blocos de
critérios usados para avaliar/rotular os irmãos. a) Critérios
ritual-calendariais e alimentares (Cl 2:16–17). “Ninguém vos julgue pelo comer,
pelo beber, por causa de festa, lua nova ou sábados…” Aqui, a espiritualidade
estava sendo medida por regras de comida e bebida (provavelmente ligadas a
observâncias religiosas), calendário de solenidades (festas, luas novas,
“sábados” no plural). Paulo chama isso de “sombra”: eram coisas que apontavam
para Cristo, mas estavam virando termômetro de aceitação e motivo de condenação.
b) Critérios místico-ascéticos (Cl 2:18–19). “Ninguém vos desqualifique… com
falsa humildade e culto de anjos, baseando-se em visões…” Aqui o critério era:
“sou mais espiritual porque tenho experiências/visões/contato com ‘camadas’
espirituais”. Paulo diz que isso é inchaço carnal e que o problema central é:
“não retém a Cabeça” (Cristo), ou seja, é espiritualidade “avançada”, mas sem
união real com Cristo. c) Critérios de preceitos humanos e ascetismo
regulamentado (Cl 2:20–23). “Por que… vos sujeitais a ordenanças: ‘não
manuseies, não proves, não toques’… segundo preceitos e doutrinas dos homens?” Esse
é o ponto: preceitos humanos. E Paulo dá
o diagnóstico completo: essas regras têm “aparência de sabedoria” (religião
“bonita”), parecem humildade e disciplina, mas “não têm valor algum contra a
sensualidade/carne” (isto é, não transformam o coração; só controlam por fora).
Não é qualquer orientação prática. É quando
normas inventadas ou absolutizadas por homens viram a base de aceitação diante
de Deus (como se Cristo não bastasse), tornam-se sinal de superioridade, arma
de julgamento (“quem não faz, é inferior”), substituto da santificação
verdadeira (mudança interna pelo Espírito). Paulo inclusive mostra a lógica:
são coisas “segundo mandamentos e ensinamentos de homens” (Cl 2:22), ou seja,
não nascem da Cabeça, mas de um sistema humano de controle e status.
Esses critérios produzem três efeitos
espirituais ruins: deslocam a suficiência de Cristo. Se eu preciso de “Cristo +
regras + experiências” para ser pleno, então já neguei, na prática, que “nele
estais completos” (Cl 2:9–10). Criam tribunal dentro da igreja. O evangelho
une; o tribunal separa. Por isso Paulo repete: “ninguém vos julgue… ninguém vos
desqualifique…” (Cl 2:16, 18). Dão “aparência” sem poder real. Ascetismo pode
gerar disciplina externa, mas Paulo diz que não resolve o centro do problema: o
coração.
Paulo não substitui “julgamento por regras”
por “cada um faz o que quer”. Ele substitui por algo mais profundo. “Andai
nele… enraizados e edificados” (Cl 2:6–7), “Retendo a Cabeça” (Cl 2:19), crescimento
orgânico do corpo (transformação real), não performance. Então, o critério
verdadeiro é união com Cristo que produz fruto (gratidão, santidade, amor,
serviço), não marcadores externos usados como régua de superioridade.
É possível verificar que há uma aplicação
direta para a igreja hoje. “Preceitos humanos” hoje aparecem quando o
cristianismo vira um código de sinais (eu pertenço porque faço X), um código de
pureza social (eu sou melhor porque não faço Y), um código de experiências (eu
sou superior porque vivi Z), e tudo isso vira medida de valor espiritual.
O antídoto paulino é simples e duro: Cristo é
a Cabeça; todo o resto é meio, nunca critério de salvação nem arma de
julgamento.
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