quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Misericórdia e justiça de mãos dadas

Cristãos há que olham para o judaísmo com simpatia quase invejosa, avistando o sistema judaico como tendo superioridade. Bom é que se diga que o plano da redenção vem sendo desdobrado desde a queda do homem, passando por várias etapas, sendo uma delas o judaísmo. Um olhar atento notará que o progresso do plano vai acontecendo em ordem crescente. Portanto, o cristianismo traz mais densidade porque a encarnação de Jesus Cristo trouxe para um mundo separado das cortes celestes, o próprio ambiente de cima, vivendo Jesus tal como Adão o era antes da queda.

Durante a infância, Jesus não era semelhante, em comportamento e atitudes, às crianças suas contemporâneas. Seu comportamento era sempre colaborativo, jamais proferia palavras ríspidas ou grosseiras, era sempre muito gentil com qualquer pessoa, mesmo com os animais, atraindo para si pressões sociais intensas. Na juventude foi o exemplo de cooperação doméstica incansável, aprendeu o ofício do seu pai terrestre e, com isso, ajudava a família no sustento. Sua presença sempre resultava em benção para os que o cercavam. Seu comportamento era constantemente reprovado por seus irmãos. Viveu de maneira misericordiosa e justa, o que lhe custava desconforto.

Misericórdia e justiça são atributos do caráter de Deus (Êxodo 34:6). Jesus era Deus. No deserto, peregrinando com os israelitas, Jesus demonstrou diversas vezes esses atributos. Ao instituir o santuário portátil, revelou em toda dinâmica religiosa esses mesmos atributos. O ritual do santuário ensinava necessariamente como a misericórdia e a justiça podem agir para reparar o dano causado pelo pecado.

Começando pela arquitetura do santuário (pátio, lugar santo e santíssimo) as suas partes representavam, como no tribunal celeste, a misericórdia e a justiça num encontro proposital. No pátio estava a humanidade pecadora, que constantemente quebrava a aliança do Sinai. As cenas passadas ali no pátio ensinavam que o pecado é imperdoável - porque a lei é imutável e inexorável, mas o pecado pode ser transferível. Era ali que o pecador transferia ao animal a sua culpa e este tinha a sua vida tolhida por causa da exigência legal. Aqui já se começa perceber como operam a justiça e a misericórdia. Por causa do processo legal, uma vida teria que expiar a culpa, logo, a transferência da culpa transformava o animal em apenado no lugar do verdadeiro culpado, mas, este agora com a responsabilidade transferida. Parte do sangue do animal era trazido ao interior do santuário, à primeira sala, o lugar santo, como expiação ou pagamento da culpa, por força de uma exigência legal e, mais uma vez, o pecado era transferido para o véu do santuário, de maneira que o pecador, que estava no pátio, ficava sem o fardo do seu pecado. Até aqui mais misericórdia do que justiça. Assim, os pecados transferidos durante o ano iam sendo acumulados no véu do santuário, um sistema de substituição dos culpados que ficavam livres da pena de morte. É possível entender que havia no ritual lições de misericórdia, sem que a justiça fosse relaxada. A transferência do pecado para a vítima e depois para o véu era exatamente a ação conjugada da misericórdia e da justiça.

Após um ano de atividades no santuário, ocorria o dia do perdão (Yom kippur) ou o dia do acerto de contas ou da expiação. No décimo dia de Tishrei, o sétimo mês, o sumo sacerdote, e não o sacerdote comum, entrava no santuário e dirigia-se ao lugar santíssimo para a purificação do edifício. De acordo com Levítico 16, dois bodes eram trazidos à porta do santuário e lançavam-se sorte sobre eles. Um era para o Senhor, o outro era o bode emissário, o bode com a missão de carregar os pecados que estavam no santuário. O sacerdote deveria degolar um novilho que o substituiria pessoalmente e também a sua família e levaria o sangue da sua expiação para o interior do véu (lugar santíssimo) e aspergiria sobre o propiciatório. Assim, fazia a expiação por si mesmo. Depois, levaria o sangue do bode para o Senhor para dentro do véu e aspergiria também sobre o propiciatório. Aquele sangue faria expiação pelo povo, uma vez que o bode recebia os pecados que eram do povo e que se cumulavam no santuário (Lev.16:16). Depois o sacerdote saia do lugar santíssimo, colocava a mão sobre a cabeça do bode vivo, transferindo todas as transgressões para o animal vivo enviando-o ao deserto.

O ritual completo do grande dia da expiação educava demonstrando a operação da misericórdia e da justiça. A misericórdia providenciava um substituto para o pecador cujo sangue derramado era colocado no santuário, cumprindo o rito legal da justiça.  No dia da expiação, o sumo sacerdote, havendo tomado uma oferta para a congregação, ia ao lugar santíssimo com o sangue substituto e o aspergia sobre o propiciatório (a tampa da arca que representava o trono de Deus), em cima das tábuas da lei, satisfazendo os reclamos da lei que exigia a vida do pecador. Aquele sangue substituía o sangue de uma nação. Novamente vemos a misericórdia e a justiça em operação conjugada. Em seguida transferia ao bode emissário todas as iniquidades acumuladas dos israelitas. Por esse processo, transferiam-se todos os pecados para quem o originou. Há uma informação muito sensível no edifício do santuário. O lugar santo era o lócus onde a misericórdia operava; o lugar santíssimo era o lócus onde a justiça era aplicada, porém, no propiciatório ambas misericórdia e justiça se encontravam.

A dinâmica diária no santuário tinha a função de evidenciar o caráter de Deus e seu processo de oferecer misericórdia sem abdicar da justiça. Jesus, na sua vida em nosso planeta, personificou diariamente a dinâmica do santuário.  Em seu ministério abençoava a miséria humana com sua inesgotável misericórdia. Ele era o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas (João 10:11). Em muitas ocasiões apresentou o trabalho conjugado da misericórdia de justiça tanto em palavras como em ações. Quando conversava com os pecadores sempre alertava à necessidade da misericórdia apoiada pela justiça. Contou parábolas para mostrar essas virtudes essenciais. Assim, na parábola do bom samaritano exaltou a misericórdia quando dissertou sobre o comportamento do samaritano socorrendo o judeu, mas, também demonstrou os princípios da justiça, porque era justo que o homem moribundo fosse socorrido, sendo também justo que o samaritano fosse louvado. Quando alimentou a multidão a partir de cinco pães e dois peixes, quis demonstrar os mesmos dois princípios. Do mesmo modo, quando curava doentes demonstrava o resultado da aplicação da misericórdia e da justiça.

Todavia, quando chegou o tempo para que Jesus fosse entregue para morrer, ocorreu a manifestação mais intensa e mais virtuosa da força da misericórdia de mãos dadas com a justiça. Inequivocamente, a crucifixão de Jesus permitiu que a humanidade presenciasse o sistema do amor e da justiça operando para resolver uma questão jurídica que somente seria solucionada com a morte. Na qualidade de homem Jesus tomou sobre si os pecados da humanidade, tal qual o sumo sacerdote no santuário terrestre assumia os pecados da nação no Yom kippur. A crucifixão representou a imolação do cordeiro cujo sangue deveria ser levado para o interior do santuário. Assim, Jesus ao ressuscitar e subir ao céu, entrou no santuário celeste com o seu próprio sangue, sendo que a partir do ano de 1844, segundo as profecias do livro de Daniel, ele entrou no lugar santíssimo para apresentar o seu sangue para limpar a culpa de todos aqueles que, por fé, o aceitarem, copiando-lhe o caráter a forma material de exercer lealdade. Do mesmo modo, a lei no santuário celeste exige a vida do pecador, então, a misericórdia entra em ação e, por causa da fé no salvador, o conjunto dos pecadores leais ao sistema de Deus, transfere seus pecados para o justo sumo sacerdote, tendo sua sentença de morte anulada, embora a justiça esteja sendo ressaltada, pois alguém substituiu os apenados. Assim, a cruz do calvário permitiu o encontro da misericórdia com a justiça.

A lição que temos é que o santuário terrestre foi o cenário que evidenciou o processo para salvar a humanidade rebelde. Desfortunadamente, o cristianismo não compreende o santuário em seu contexto, definindo-o como um local para praticar ritos com o fim de aplacar a ira de um Deus raivoso. Na visão dos cristãos, o santuário do Antigo Testamento pertine ao judaísmo e nada tem a ver com o cristianismo. Porém, é no santuário que está toda ciência da salvação com seus processos, uma manifestação do amor insondável de Deus e sua justiça.

 

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