Cristãos há que olham para o
judaísmo com simpatia quase invejosa, avistando o sistema judaico como tendo
superioridade. Bom é que se diga que o plano da redenção vem sendo desdobrado
desde a queda do homem, passando por várias etapas, sendo uma delas o judaísmo. Um
olhar atento notará que o progresso do plano vai acontecendo em ordem crescente.
Portanto, o cristianismo traz mais densidade porque a encarnação de Jesus
Cristo trouxe para um mundo separado das cortes celestes, o próprio ambiente de
cima, vivendo Jesus tal como Adão o era antes da queda.
Durante a infância, Jesus não era
semelhante, em comportamento e atitudes, às crianças suas contemporâneas. Seu
comportamento era sempre colaborativo, jamais proferia palavras ríspidas ou
grosseiras, era sempre muito gentil com qualquer pessoa, mesmo com os animais, atraindo
para si pressões sociais intensas. Na juventude foi o exemplo de cooperação doméstica
incansável, aprendeu o ofício do seu pai terrestre e, com isso, ajudava a
família no sustento. Sua presença sempre resultava em benção para os que o
cercavam. Seu comportamento era constantemente reprovado por seus irmãos. Viveu
de maneira misericordiosa e justa, o que lhe custava desconforto.
Misericórdia e justiça são atributos
do caráter de Deus (Êxodo 34:6). Jesus era Deus. No deserto, peregrinando com
os israelitas, Jesus demonstrou diversas vezes esses atributos. Ao instituir o
santuário portátil, revelou em toda dinâmica religiosa esses mesmos atributos.
O ritual do santuário ensinava necessariamente como a misericórdia e a justiça
podem agir para reparar o dano causado pelo pecado.
Começando pela arquitetura do santuário
(pátio, lugar santo e santíssimo) as suas partes representavam, como no
tribunal celeste, a misericórdia e a justiça num encontro proposital. No pátio
estava a humanidade pecadora, que constantemente quebrava a aliança do Sinai.
As cenas passadas ali no pátio ensinavam que o pecado é imperdoável - porque a
lei é imutável e inexorável, mas o pecado pode ser transferível. Era ali que o
pecador transferia ao animal a sua culpa e este tinha a sua vida tolhida por
causa da exigência legal. Aqui já se começa perceber como operam a justiça e a
misericórdia. Por causa do processo legal, uma vida teria que expiar a culpa,
logo, a transferência da culpa transformava o animal em apenado no lugar do
verdadeiro culpado, mas, este agora com a responsabilidade transferida. Parte do
sangue do animal era trazido ao interior do santuário, à primeira sala, o lugar
santo, como expiação ou pagamento da culpa, por força de uma exigência legal e,
mais uma vez, o pecado era transferido para o véu do santuário, de maneira que
o pecador, que estava no pátio, ficava sem o fardo do seu pecado. Até aqui mais
misericórdia do que justiça. Assim, os pecados transferidos durante o ano iam
sendo acumulados no véu do santuário, um sistema de substituição dos culpados
que ficavam livres da pena de morte. É possível entender que havia no ritual
lições de misericórdia, sem que a justiça fosse relaxada. A transferência do
pecado para a vítima e depois para o véu era exatamente a ação conjugada da
misericórdia e da justiça.
Após um ano de atividades no
santuário, ocorria o dia do perdão (Yom kippur) ou o dia do acerto de contas ou
da expiação. No décimo dia de Tishrei, o sétimo mês, o sumo sacerdote, e não o
sacerdote comum, entrava no santuário e dirigia-se ao lugar santíssimo para a purificação
do edifício. De acordo com Levítico 16, dois bodes eram trazidos à porta do
santuário e lançavam-se sorte sobre eles. Um era para o Senhor, o outro era o
bode emissário, o bode com a missão de carregar os pecados que estavam no
santuário. O sacerdote deveria degolar um novilho que o substituiria
pessoalmente e também a sua família e levaria o sangue da sua expiação para o
interior do véu (lugar santíssimo) e aspergiria sobre o propiciatório. Assim,
fazia a expiação por si mesmo. Depois, levaria o sangue do bode para o Senhor
para dentro do véu e aspergiria também sobre o propiciatório. Aquele sangue
faria expiação pelo povo, uma vez que o bode recebia os pecados que eram do
povo e que se cumulavam no santuário (Lev.16:16). Depois o sacerdote saia do
lugar santíssimo, colocava a mão sobre a cabeça do bode vivo, transferindo
todas as transgressões para o animal vivo enviando-o ao deserto.
O ritual completo do grande dia
da expiação educava demonstrando a operação da misericórdia e da justiça. A
misericórdia providenciava um substituto para o pecador cujo sangue derramado
era colocado no santuário, cumprindo o rito legal da justiça. No dia da expiação, o sumo sacerdote, havendo
tomado uma oferta para a congregação, ia ao lugar santíssimo com o sangue
substituto e o aspergia sobre o propiciatório (a tampa da arca que representava
o trono de Deus), em cima das tábuas da lei, satisfazendo os reclamos da lei
que exigia a vida do pecador. Aquele sangue substituía o sangue de uma nação. Novamente
vemos a misericórdia e a justiça em operação conjugada. Em seguida transferia ao
bode emissário todas as iniquidades acumuladas dos israelitas. Por esse
processo, transferiam-se todos os pecados para quem o originou. Há uma
informação muito sensível no edifício do santuário. O lugar santo era o lócus
onde a misericórdia operava; o lugar santíssimo era o lócus onde a justiça era
aplicada, porém, no propiciatório ambas misericórdia e justiça se encontravam.
A dinâmica diária no santuário tinha
a função de evidenciar o caráter de Deus e seu processo de oferecer
misericórdia sem abdicar da justiça. Jesus, na sua vida em nosso planeta, personificou
diariamente a dinâmica do santuário. Em
seu ministério abençoava a miséria humana com sua inesgotável misericórdia. Ele
era o bom pastor que dá a vida pelas ovelhas (João 10:11). Em muitas ocasiões
apresentou o trabalho conjugado da misericórdia de justiça tanto em palavras
como em ações. Quando conversava com os pecadores sempre alertava à necessidade
da misericórdia apoiada pela justiça. Contou parábolas para mostrar essas
virtudes essenciais. Assim, na parábola do bom samaritano exaltou a
misericórdia quando dissertou sobre o comportamento do samaritano socorrendo o
judeu, mas, também demonstrou os princípios da justiça, porque era justo que o
homem moribundo fosse socorrido, sendo também justo que o samaritano fosse
louvado. Quando alimentou a multidão a partir de cinco pães e dois peixes, quis
demonstrar os mesmos dois princípios. Do mesmo modo, quando curava doentes
demonstrava o resultado da aplicação da misericórdia e da justiça.
Todavia, quando chegou o tempo
para que Jesus fosse entregue para morrer, ocorreu a manifestação mais intensa e
mais virtuosa da força da misericórdia de mãos dadas com a justiça.
Inequivocamente, a crucifixão de Jesus permitiu que a humanidade presenciasse o
sistema do amor e da justiça operando para resolver uma questão jurídica que somente
seria solucionada com a morte. Na qualidade de homem Jesus tomou sobre si os
pecados da humanidade, tal qual o sumo sacerdote no santuário terrestre assumia
os pecados da nação no Yom kippur. A crucifixão representou a imolação do
cordeiro cujo sangue deveria ser levado para o interior do santuário. Assim,
Jesus ao ressuscitar e subir ao céu, entrou no santuário celeste com o seu próprio
sangue, sendo que a partir do ano de 1844, segundo as profecias do livro de
Daniel, ele entrou no lugar santíssimo para apresentar o seu sangue para limpar
a culpa de todos aqueles que, por fé, o aceitarem, copiando-lhe o caráter a
forma material de exercer lealdade. Do mesmo modo, a lei no santuário celeste
exige a vida do pecador, então, a misericórdia entra em ação e, por causa da fé
no salvador, o conjunto dos pecadores leais ao sistema de Deus, transfere seus
pecados para o justo sumo sacerdote, tendo sua sentença de morte anulada,
embora a justiça esteja sendo ressaltada, pois alguém substituiu os apenados.
Assim, a cruz do calvário permitiu o encontro da misericórdia com a justiça.
A lição que temos é que o
santuário terrestre foi o cenário que evidenciou o processo para salvar a humanidade
rebelde. Desfortunadamente, o cristianismo não compreende o santuário em seu
contexto, definindo-o como um local para praticar ritos com o fim de aplacar a
ira de um Deus raivoso. Na visão dos cristãos, o santuário do Antigo Testamento
pertine ao judaísmo e nada tem a ver com o cristianismo. Porém, é no santuário
que está toda ciência da salvação com seus processos, uma manifestação do amor
insondável de Deus e sua justiça.
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