terça-feira, 26 de janeiro de 2016

DUAS VERSÕES DA MESMA COISA

Bezerro de ouro
O marcante caso do bezerro de ouro teve efeito vicariante na história de Israel. Moisés subiu ao monte Sinai e permaneceu lá por trinta dias e noites. Deus interrompe a reunião e comanda para Moisés descer porque o povo estava em franca decadência. Antes de descer, Moisés roga a Deus que perdoe o povo, mesmo antes de ter completa noção do ocorrido. A medida em que desce começa a ouvir os alaridos do povo dançando e cantando em torno do bezerro de ouro. Moisés é tomado por espanto e no calor do momento atira as tábuas de pedras com os escritos divinos da Lei, quebrando-as. Toma o bezerro de ouro, queima-o e o reduz a pó; mistura o pó com agua e faz com que o povo tome a solução, parte do ritual de purificação; executa os culpados; três mil morrem num só dia. Moisés volta no dia seguinte ao monte Sinai e fala com Deus suplicando que perdoe o povo e por quarenta dias continua pleiteando com Deus para que não remova a Sua presença do acampamento. Numa cena memorável Deus passa diante de Moisés a quem Ele diz “veja as minhas costas, porque ninguém pode ver minha face”. Moisés profere as palavras que se tornaram conhecidas como os treze atributos da misericórdia: “Passando, pois, o SENHOR perante ele, clamou: O SENHOR, o SENHOR Deus, misericordioso e piedoso, tardio em irar-se e grande em beneficência e verdade; que guarda a beneficência em milhares; que perdoa a iniquidade, e a transgressão e o pecado; que ao culpado não tem por inocente; que visita a iniquidade dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos até à terceira e quarta geração. E Moisés apressou-se, e inclinou a cabeça à terra, adorou” (Êxodo 34:6-8). As palavras de Moisés são a base para aqueles que buscam a Deus de forma penitencial. Moisés usou novamente estas palavras quando encarou o pecado dos espias (Números 14:17-20). Deus então instrui Moisés a preparar um segundo conjunto de tábuas, um símbolo obvio de que Deus havia indultado o povo e ainda conservava sua aliança com eles.

Yon Kippur
Uma vez por ano o Sumo Sacerdote entrava no lugar santíssimo do tabernáculo buscando, primeiramente, expiação para ele e sua família e depois para o povo. O Yon Kippur, dia da expiação, era um acontecimento insólito e muito organizado, o qual tinha no núcleo um ritual envolvendo dois bodes, com aspectos iguais, sobre os quais era lançada sorte. Um deles era para o Senhor, sendo oferecido como oferta pelo pecado. O outro era para Azazel. Sobre este, o Sumo Sacerdote confessava todos os pecados e transgressões do povo, colocando suas mãos sobre o animal. Assim, o segundo bode levava todas as iniquidades e era conduzido para o deserto onde morreria jogado em um precipício.

Todo ritual era conduzido sem falhas ou improvisações, sem alterações ou inovações. Era um ritual intenso em seu visual e simbolismo.

As duas narrativas acima não são análogas. A primeira é cheia de sentimento e paixão, uma vez que Deus ficou aborrecido e Moisés implorou poderosamente. A segunda é um ritual para o qual Aarão era o protagonista ou o Sumo Sacerdote da época, mas, os atos, ofertas, confissões, aspersões de sangue, sorte lançada para os dois bodes com um deles sendo levado ao deserto, tudo ocorrendo ano após ano até a destruição do templo. Não há emoção, nenhuma variante, nenhum diálogo entre o sacerdote e Deus. Nada era imprevisível. As duas narrativas pertencem a orbes diferentes. No entanto, são duas versões do mesmo acontecimento. Ambas tratam do remorso humano e do perdão divino, ou seja, ambas tratam da restauração de relacionamentos quebrados. Curiosamente, ambas aconteceram no mesmo dia. Moisés desceu do monte Sinai no décimo dia de Tishrei. Também no décimo dia de Tishrei acontecia o Yon Kippur, no qual, ano após ano o Sumo Sacerdote conduzia o rito da expiação. O que vemos nestas duas narrativas é um processo, a lógica que é vital se queremos compreender a natureza complexa do cristianismo.

Santa Ceia
Da mesma forma como os israelitas mudaram do Êxodo para Levíticos, do primeiro ano da jornada para o segundo, a tarefa de assegurar a expiação muda de Moises para Aarão, ou seja, do profeta para o sacerdote, do drama imprevisto para a regra que governa o ritual. Esta é a diferença entre o único e o universal, o evento que marca uma época e o ritual que se repete infinitamente fornecendo caráter e continuidade.

Para o cristianismo, a tarefa de assegurar a expiação passa dos Sacerdotes para Cristo; o Yon Kippur foi substituído pelo sacrifício vicário de Jesus. Assim como o bode para o Senhor, “Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados”(Isaías 53:4-5). O sacrifício de Jesus foi um evento único. Na santa ceia, Jesus juntou as duas narrativas dando ao cristianismo uma nova perspectiva de reconciliação de um relacionamento quebrado entre Deus e a humanidade, com protocolo imutável; “Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha”(Coríntios 11:26).

No ritual da ceia, especificamente no lava pés, confessamos ao nosso próximo nossas faltas cometidas contra ele, conforme o protocolo celeste: “Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta” (Mateus 5:23-24). Assim, são reatados relacionamentos quebrados entre homens. Somente após, poderemos participar do pão e do vinho. Ambos rituais são a reconciliação entre Deus e os homens, ou seja, a expiação realizada, uma vez que expiar significa colocar em ordem, sendo que o que é colocado em ordem é nosso relacionamento com Deus. O pão representa o corpo de Cristo que não cometeu pecado. Comendo o pão colocamos em nossa grade estrutural, simbolicamente, os átomos do corpo de Cristo, e assim, teremos como vencer as tendências carnais e governar nossos desejos de concupiscência. Quando tomamos o vinho, simbolicamente colocamos em nós o sangue de Cristo, o qual leva energia vital ao corpo. Esse sangue simboliza a nossa volição controlada pelo sangue de Cristo; não temos sujeição ao pecado porque temos o corpo e o sangue de Cristo.
(Texto baseado no capítulo “From Never Again to Ever Again” do livro Leviticus do Rabino Jonathan Sacks.)

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