O sistema religioso supõe poder
mediar as relações entre a humanidade e Deus. Nesta ação, as religiões lidam
com um nível crítico de subjetividade que é, na maioria dos casos, frustrante
para o fiel, pois este não alcança o desenvolvimento espiritual que imagina
estar a sua disposição no âmbito confessional abraçado. Há, portanto, um
embaraço que pede uma solução. O que fazer?
Dois conceitos são importantes
para que possamos traçar algum norte: Transcendência e Imanência. O primeiro
vem do latim transcendo e significa passar
subindo, atravessar, ultrapassar, transpor; transcendente significa que Deus
está completamente além dos limites cosmológicos. Neste sentido Ele é
completamente imprevisível; há ocasiões em que Ele pode punir ou perdoar,
galardoar ou subtrair e, para a humanidade, é necessária a experiência da
confiança que, na maioria das vezes vem da previsibilidade. Por outro lado, o
conceito de imanência defende que Deus é uma manifestação e está totalmente
presente no mundo e nas coisas que cercam ao mundo. Assim, para a humanidade, a
imanência é mais pragmática e tem se mostrado útil no trato das coisas
religiosas, considerando que nas religiões antigas, as divindades criadas pela
humanidade são uma espécie de mediação que funciona no terreno físico, com
imanência clara. No caso do cristianismo, ter um Deus que está além da
realidade humana, cujo poder é tremendo causa uma espécie de inquietação que
desfavoreceu o contato entre Deus e a humanidade. Poderia o Deus de Abraão, Isaque
e Jacó ser transcendente e imanente ao mesmo tempo?
A resposta a esta questão
encontra-se no episódio do bezerro de ouro (Êxodo 32). Deus comanda Moisés para
preparar o povo para encontrar-se com Ele no pé do monte Sinai. No momento
aprazado, Deus se manifesta de forma poderosa e fala pessoalmente a todo povo.
Porém, os israelitas ficaram muito assustados com a possibilidade de morte
coletiva e solicitaram a Moisés que intermediasse e não Deus falasse
diretamente. Aqui está uma situação muito crítica, mas esclarecedora da relação
entre a humanidade e Deus; a transcendência de Deus é assustadora. Há uma
impossibilidade entre seres que estão dentro do universo e um Deus que o
transcende, porque Ele é muito maior do que as criaturas, está em todos os
lugares e além da realidade humana. Assim, Moisés torna-se o mediador entre
Deus e os israelitas. A razão é que Moisés é imanente e estando dentro da
realidade do povo isto o torna previsível.
Moisés sobe ao Monte Sinai e fica
ausente por muito tempo, o suficiente para causar insegurança no povo. Com um
Deus imprevisível logo ali no Sinai e Moisés ausente, o povo entrou em
depressão e desespero por ver-se sem mediação. Consequentemente, aglutinaram-se
em torno de Arão, o líder substituto, e pressionaram por uma solução. Então,
Arão fabricou o bezerro de ouro, o qual não representava um ídolo, mas a
intermediação necessária, uma solução buscada por causa da longa vivência no
Egito, onde os deuses estavam próximos sendo imanentes com a natureza.
Moisés no cume do Sinai não
percebeu o que sucedera. Deus foi quem tangeu Moisés a descer e buscar ver de
perto o desastre moral ocorrido. Moisés imediatamente intercede pedindo que
Deus perdoe o povo. Depois desce, vê a cena, joga as tabuas da lei
quebrando-as, queima o bezerro e o transforma em pó, mistura o pó com água e obriga
a todos beberem, separa os levitas e executa a punição dos culpados. Então
retorna a Deus e novamente intercede por perdão ao povo. O que acontece
posteriormente não é de compreensão simples; começa com Deus comandando o povo
levantar acampamento e prosseguir sua jornada em direção a terra prometida.
Porém, Deus diz que não iria mais no meio deles (Ex. 33:1-3), ao invés disso,
enviaria um anjo diante deles. A leitura bíblica deixa transparecer que Deus
viu perigo em estar perto do povo, dada a sua tendência em provocar-Lhe a ira.
Mas, quando o povo ouviu que Deus não iria no meio deles ficou em extrema
angustia.
Logo após, Moisés moveu a sua
tenda para fora do acampamento. Era a referida tenda o lugar onde a nuvem que
acompanhava o povo baixava quando Moisés lá estava e, consequentemente o lugar
onde Deus falava com Moisés, por essa razão era chamada a tenda da reunião.
Ali, começou um diálogo entre Moisés e Deus, quando Moisés argui sobre a
possibilidade de reconsideração da decisão de Deus em não ir com o povo: “Então
lhe disse: Se tu mesmo não fores conosco, não nos faças subir daqui” (Êxodo
33:15). Daqui em diante vemos uma interlocução sobre algo que parece
metafísico, sobre a natureza divina, Moisés fala sobre a face, sobre os
caminhos e sobre a glória de Deus. Então Deus coloca Moisés dentro de uma fenda
na rocha e passa diante dele. Tal foi a impressão causada em Moisés que
exclamou: “O SENHOR, o SENHOR Deus, misericordioso e piedoso, tardio em irar-se
e grande em beneficência e verdade; que guarda a beneficência em milhares; que
perdoa a iniquidade, e a transgressão e o pecado; que ao culpado não tem por
inocente; que visita a iniquidade dos pais sobre os filhos e sobre os filhos
dos filhos até à terceira e quarta geração” (Êxodo 34:6-7). Estas palavras
ficaram conhecidas como os treze atributos da misericórdia.
Duas coisas nos chamam a atenção
neste episódio: Por que Moisés discutiu pontos tão críticos de teologia
enquanto o povo vivia a mais intensa crise de relacionamento com Deus? Por que,
justamente antes disso, ele moveu a sua tenda para fora do acampamento? Parece
haver uma história dentro da história que necessita ser levantada.
Uma vez que o episódio do bezerro
de ouro estava superado, Moisés proferiu a mais audaciosa oração, de tal modo
que a Torá nos mostra apenas alguns fragmentos, forçando-nos a completar a
narrativa. O Rabbi Jonathan Sacks, em seu livro sobre Levítico completa dizendo
que Moisés teria argumentado assim: “Soberano do universo, eu movi a minha
tenda para fora do acampamento para sinalizar que não é a minha distância do
povo a causa do problema. É a Sua distância. A maneira como os israelitas
poderiam vivencia-Lo com o Senhor assim distante é como uma força terrificante
e esmagadora. Eles presenciaram como o Senhor forçou o mais poderoso império no
mundo a ficar de joelhos. Eles testemunharam o Senhor tornar o mar em terra
seca, mandar alimento do céu e tirar água da rocha. Eles sabem que ninguém
poderá vê-Lo e viver. Eles também sentiram que ninguém poderá ouvi-Lo e viver.
Quando o Senhor se revelou a eles na montanha, clamaram a mim dizendo: fala
conosco e nós ouviremos, porque se Deus falar conosco, morreremos. Quando
fizeram o bezerro de ouro, mal orientados como estavam, pensaram numa maneira
de encontrar Deus sem terror. Eles necessitam do Senhor próximo”.
Moisés arguiu Deus sobre a sua
transcendência quando discutiu teologia falando da face, dos caminhos e da
glória de Deus, parâmetros fundamentais do relacionamento entre a divindade e a
humanidade. Poderia Deus se relacionar com a humanidade não somente dos céus,
mas, no meio do povo no acampamento? Como poderia alguém dentro do universo
começar a compreender alguém que estava além do universo?
A mais profunda crise
experimentada no episódio do bezerro de ouro aconteceu porque Moisés era a
única conexão entre o céu e a terra. A sua ausência trouxe terror.
Agora, chamamos a tenção para
outro fato. Quando os israelitas deixaram o Egito levaram consigo o alfabeto,
considerado o maior tesouro que poderiam ter carregado. O alfabeto tornou possível
a comunicação entre eles e o mundo e tornou-se a resposta ao fundamental
problema da comunicação com Deus. Palavras são a única forma de cruzar o abismo
entre o finito e o infinito, entre os humanos finitos e um Deus infinito. Deus
falou a Adão, Cain, Noé, aos patriarcas e a Moisés.
Deus respondeu a Moisés dizendo:
“E me farão um santuário, e habitarei no meio deles”. O edifício sagrado
tornou-se o lar de Deus entre os homens, de lá a sua palavra foi ouvida pelo
povo e deu-Lhes a Torá. Ao longo das eras tem Deus se comunicado com homens
através da escrita. A leitura da Bíblia, a palavra de Deus, coloca a humanidade
em contato com Ele, o fosso entre os céus e a terra foi aterrado e temos a
presença de Deus diretamente conosco. Por essa razão, a leitura constante da
palavra escrita nos permite ouvir Deus, dialogar com Ele e, se o ouvirmos e
praticarmos seus comandos, seremos transformados à semelhança Dele. Todo o
processo religioso deve necessariamente levar à transformação, a qual vem pelo
ouvir. Nossa ligação com o céu não ocorre num plano místico, mas na leitura da
palavra e na obediência a ela.
Na própria Bíblia há
recomendações explícitas sobre a leitura e a prática, como por exemplo em Josué
1:8 “Não se aparte da tua boca o livro desta lei; antes medita nele dia e
noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme a tudo quanto nele está
escrito; porque então farás prosperar o teu caminho, e serás bem sucedido”;
Josué 23:6 “Esforçai-vos, pois, muito para guardardes e para fazerdes tudo
quanto está escrito no livro da lei de Moisés; para que dele não vos aparteis,
nem para a direita nem para a esquerda”; I Reis 2:3 “E guarda a ordenança do
SENHOR teu Deus, para andares nos seus caminhos, e para guardares os seus
estatutos, e os seus mandamentos, e os seus juízos, e os seus testemunhos, como
está escrito na lei de Moisés; para que prosperes em tudo quanto fizeres, e
para onde quer que fores”. Finalmente o apóstolo Paulo recomenda em Romanos
15:4 “Porque tudo o que dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito, para
que pela paciência e consolação das Escrituras tenhamos esperança”.
Através das Escrituras Sagradas o
Deus transcendente torna-se imanente e podemos tocá-lo. Por outro lado, Deus dá
à humanidade algo que é próprio Dele, o dom maravilhoso da fala e da escrita,
assim, torna possível um tipo de mediação que não termina com ausência de um
mediador. Embora saibamos que Deus é poderoso e terrível em força, podemos nos
aproximar dEle sem medo através da sua palavra e dialogar diretamente com um
Deus que está muito além da humanidade.
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