sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Resta um Descanso II

A introdução de ideias gregas no âmago do pensamento cristão tornou quase impossível entender pontos de vista judaicos fundamentais, como por exemplo, o conceito de santo. Para a maioria dos cristãos a ideia de santo está relacionada a presença de algo muito vasto e que inspira temor e, em relação a Deus, sempre há referência ao seu relacionamento com a humanidade, fato que não está errado, porém é incompleto.

Deve-se buscar o entendimento deste conceito no próprio interior do pensamento hebraico e, neste caso, não existe fonte mais segura do que a oportuna Torá. Assim, na Torá, a aparição da palavra santo está relacionada ao Shabbat ou ao santuário.

Segundo o Rabino Jonathan Sacks, quando a palavra santo está relacionada ao shabbat há a necessidade de conhecer a palavra hebraica “tzimtzum”, que significa contração divina ou auto ocultamento, um dos mais gloriosos conceitos dados ao judaísmo. Este conceito está fortemente ligado ao shabbat formando a ideia de que há uma incompatibilidade ou impossibilidade entre o infinito e o finito. Tzimtzum carrega o juízo de que Deus está em todos os lugares; se é assim, como poderia haver outra coisa além dEle? Tzimtzum parece explicar que duas diferentes entidades (Deus e aquilo que não é Deus) não podem ocupar o mesmo tempo/espaço.

Seguindo o raciocínio acima, o ato da criação envolveu autolimitação da parte de Deus, significando que ele contraiu a sua presença para que a finitude (limitada pelo tempo e pelo espaço) com as coisas criadas pudessem surgir ou estar. Esta ideia está presente em alguns textos bíblicos que demonstram a impossibilidade entre o finito e o infinito, como por exemplo em I Reis 8:10-11, onde lemos: “E sucedeu que, saindo os sacerdotes do santuário, uma nuvem encheu a casa do SENHOR. E os sacerdotes não podiam permanecer em pé para ministrar, por causa da nuvem, porque a glória do SENHOR enchera a casa do SENHOR”. Também em Isaías 8:8 “E passará a Judá, inundando-o, e irá passando por ele e chegará até ao pescoço; e a extensão de suas asas encherá a largura da tua terra, ó Emanuel”. Ao mesmo tempo em Êxodo 40:34 “Então a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do SENHOR encheu o tabernáculo”.

A palavra hebraica para espaço e tempo é olam, a qual significa também universo, ou seja, a totalidade do tempo e do espaço, mas que também significa ne´elam, esconder. Está incorporada na língua hebraica a ideia de que espaço e tempo são dimensões da ocultação de Deus, quem está além do tempo e do espaço. Onde Deus está oculto do universo poderia ser, experimentalmente e funcionalmente, como se ele não existisse, daí a sensação que temos da sua ausência; todas as teorias sobre a espontaneidade da vida surgem por causa da sensação da ausência de Deus. Mas, os verdadeiros termos da criação envolvem um paradoxo. Sem Deus o universo não poderia existir; mas, a presença de Deus ameaça a existência de qualquer coisa separada dele. Em Ex.33:20 está explicita a referida impossibilidade entre o finito e o infinito: “E disse mais: Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá”.

Agora, vamos procurar entender um dos conceitos que provocam forte enleio para mentes gregas. O universo foi criado em seis dias; mas, a criação envolveu sete dias. O sétimo dia é declarado pelo próprio Deus como Santo. Se na semana da criação Deus traz à existência coisas finitas, confinadas no tempo e no espaço, as quais incluem o próprio homem, e se existe a impossibilidade entre o finito e o infinito, então, a cada dia da semana da criação tornou-se necessária a contração de Deus para que o finito pudesse estar. A escritora Ellen White em seu livro A Verdade sobre os Anjos, assinalou que a criação da Terra e especificamente a do homem admirou todo universo já criado e aos anjos, sendo que o próprio Deus se alegrou com o que havia criado. Tal ideia nos mostra a razão da criação do sétimo dia, significando que doravante este dia será uma janela no tempo através da qual nós veremos a presença de Deus. Neste dia deverá ocorrer a contração da criatura para que esta possa dar lugar a Deus, uma vez que ambos não ocupam simultaneamente o mesmo espaço. E como realizamos isto? Renunciando nosso próprio status de criador.  No Shabbat, todo melakha, que é definido com trabalho criativo, está proibido. No Shabbat nos tornamos mais passivos do que ativos.  Nos tornamos criaturas, não criadores.  Renunciamos o fazer para experimentar o estarmos feitos. O Shabbat é uma sala que nós fazemos para Deus no tempo.

Jonathan Sacks em seu livro Exodus, assinala que Deus criou o homem com capacidade criadora (somos feitos à imagem de Deus) e, desde então, o homem não cessa de criar. Ao invés de ficar encolhido diante dos problemas e das ameaças, o homem cria meios para solucioná-los, inventa tecnologias e muda a sua própria maneira de lidar com o mundo e, constantemente muda a si próprio tornando-se aquilo que ele mesmo imagina que é. Invés de ajoelhar-se por causa das doenças que matam e resignar-se à sorte ele constrói instrumentos, remédios, hospitais e altera o processo nosológico criando novas possibilidades salvando vidas. Esse poder criador do homem deverá ser colocado de lado no shabbat para que o criador possa estar com o homem. Do mesmo modo como Deus se autolimitou na criação, o homem deve também estar retraído no shabbat. Esta noção aparece completamente em Isaías 58:13-14 “Se desviares o teu pé do sábado, de fazeres a tua vontade no meu santo dia, e chamares ao sábado deleitoso, e o santo dia do SENHOR, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falares as tuas próprias palavras, então te deleitarás no SENHOR, e te farei cavalgar sobre as alturas da terra, e te sustentarei com a herança de teu pai Jacó; porque a boca do SENHOR o disse”.

O cessar o trabalho no shabbat não significa apenas parar com os afazeres e ir ao culto na igreja. Muitos imaginam apenas um descanso físico, e esta tese é advogada por muitos teólogos e crentes sabatistas. O conceito do shabbat está ainda além, é a auto contração do homem para dar espaço a Deus. Este conceito está explicado em Êxodo 33:17-23 “ Então disse o SENHOR a Moisés: Farei também isto, que tens dito; porquanto achaste graça aos meus olhos, e te conheço por nome. Então ele disse: Rogo-te que me mostres a tua glória. Porém ele disse: Eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti, e proclamarei o nome do SENHOR diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer. E disse mais: Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá. Disse mais o SENHOR: Eis aqui um lugar junto a mim; aqui te porás sobre a penha. E acontecerá que, quando a minha glória passar, pôr-te-ei numa fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. E, havendo eu tirado a minha mão, me verás pelas costas; mas a minha face não se verá”.

Como pode ser verificado, nossa presença no tempo sabático deve ser discreta para que Deus possa estar nele. Esse raciocínio provoca uma atitude de reconsideração do nosso comportamento nos eventos que acontecem nos templos durante o shabbat. Corriqueiramente, há muita movimentação e exibicionismo humano, fato que não nos deixa contraídos diante da divindade. Neste sentido, há pouquíssima sabedoria na dinâmica sabática nos templos onde a figura humana está sempre em evidência, indicando que nossa capacidade criativa ou criadora não cessou. Se é assim, pouca chance há de termos tempo de qualidade com Deus onde haja possibilidade de construção humana e aprendizagem, ou seja, mantemos a impossibilidade entre o finito e o infinito. Desta maneira, Deus não fala, mas o homem fala e, nestas circunstâncias passamos o sábado conosco mesmos.

Agora, vamos observar o termo santo em relação ao tabernáculo. Este era uma tenda que, sempre que montada, definia um certo espaço como santo, significando estar separado para Deus. Dentro daquele espaço nada deviria interferir entre o adorador e Deus. O tabernáculo era uma sala feita para Deus no espaço. As instruções imensamente detalhadas para a construção e os serviços do tabernáculo distinguiam que nada em santidade é resultado do empreendimento humano. Ocupar o tempo ou o espaço santo significa renunciar a criatividade humana, de modo a estar existencialmente aberto para a criatividade divina. Talvez fosse interessante ver, pelo menos, um episódio bíblico onde estes conceitos possam estar manifestos.

Em Levítico 10:1-2 está descrito o episódio da morte de Nadabe e Abiú, da seguinte maneira: “E os filhos de Arão, Nadabe e Abiú, tomaram cada um o seu incensário e puseram neles fogo, e colocaram incenso sobre ele, e ofereceram fogo estranho perante o SENHOR, o que não lhes ordenara. Então saiu fogo de diante do SENHOR e os consumiu; e morreram perante o SENHOR”. Este é um episódio muito esclarecedor, pois supostamente, os filhos de Arão estavam realizando o protocolo estabelecido para o serviço sacerdotal, ou seja, tomaram o incensário e puseram fogo, e colocaram incenso. Mas, o texto explica que eles ofereceram fogo estranho perante o SENHOR. Onde está o fato estranho? Acontece que o fogo utilizado para a queima do incenso necessariamente deveria ser o do altar que havia sido acendido por Deus e não pelo sacerdote. Os dois filhos de Arão tomaram brasas de um fogareiro que era usado para aquecer comida, ou seja, era um fogo acendido pelo homem. Seria tão grave assim queimar incenso com fogo de um fogareiro? Fogo é para o homem a força mais poderosa que ele aprendeu a dominar. Em praticamente tudo o que o homem realiza há fogo envolvido, desde a comida que come, até a locomoção, desde um simples acender de uma lâmpada até o voo perigoso de um míssil. Fogo é a mais intensa representação da força criativa humana e, neste contexto, vir à presença de Deus com toda a sua força criativa determina a contração de Deus. Esta mesma situação se repete no sacrifício de Caim.

Santo é o tempo/espaço definido pela divindade e não pela vontade humana. Nós entramos no domínio de Deus, em seus termos, não nos nossos. Portanto, terá que haver uma janela, algum ponto de transparência, na tela entre o infinito e o finito. Isto é o que santidade significa. Santidade é o espaço que nós construímos para Deus. Santidade é para a humanidade aquilo que "tzimtzum" é para Deus (Contração divina ou auto ocultamento). Da mesma forma como Deus oculta a si mesmo para dar espaço para humanidade, nós devemos ocultar-nos para dar espaço para Deus. Realizamos isto através de uma temporária renúncia da nossa criatividade no período sabático. Santidade é aquele limite vazio preenchido pela presença divina. Esta noção ou ideia de santidade é quase incompreensível para o cristianismo.

Santidade é o espaço que fazemos (separamos) para heterogeneidade de Deus. Para ouvi-lo, não para falarmos. Para deixar-se agir e não atuar. Desengajar do fluxo da atividade humana imposta pelos propósitos humanos no mundo, assim, permitindo espaço para o propósito divino emergir. Toda santidade é uma forma de renúncia, neste sentido, a guarda do sábado precisa ser revista pelas congregações que o observam, para que possam alcançar o verdadeiro descanso.


Para concluir, seria necessário olhar a sala mais isolada do santuário, o chamado lugar santíssimo. Ali havia a arca da aliança e dentro desta a lei, a vara de Arão que florescera e o maná. Sobre a arca estava a tampa ou propiciatório e sobre este, dois anjos com as asas estendidas e entre estes anjos estava o shekinah, a presença visível de Deus. O shekinah era como uma esfera luminosa entre os anjos, ou seja, a contração visível de Deus para que ele pudesse estar entre os homens. Da mesma forma, a encarnação de Jesus requereu a contração de Deus. “Para que a pudéssemos contemplar e não ser destruídos, a manifestação de Sua glória foi velada” (Desejado de Todas as Nações, p.23).

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