A introdução de ideias gregas no
âmago do pensamento cristão tornou quase impossível entender pontos de vista
judaicos fundamentais, como por exemplo, o conceito de santo. Para a maioria
dos cristãos a ideia de santo está relacionada a presença de algo muito vasto e
que inspira temor e, em relação a Deus, sempre há referência ao seu
relacionamento com a humanidade, fato que não está errado, porém é incompleto.
Deve-se buscar o entendimento
deste conceito no próprio interior do pensamento hebraico e, neste caso, não
existe fonte mais segura do que a oportuna Torá. Assim, na Torá, a aparição da
palavra santo está relacionada ao Shabbat ou ao santuário.
Segundo o Rabino Jonathan Sacks,
quando a palavra santo está relacionada ao shabbat há a necessidade de conhecer
a palavra hebraica “tzimtzum”, que significa contração divina ou auto
ocultamento, um dos mais gloriosos conceitos dados ao judaísmo. Este conceito está fortemente ligado ao shabbat formando a ideia
de que há uma incompatibilidade ou impossibilidade entre o infinito e o finito.
Tzimtzum carrega o juízo de que Deus está em todos os lugares; se é assim, como
poderia haver outra coisa além dEle? Tzimtzum parece explicar que duas
diferentes entidades (Deus e aquilo que não é Deus) não podem ocupar o mesmo tempo/espaço.
Seguindo o raciocínio acima, o
ato da criação envolveu autolimitação da parte de Deus, significando que ele
contraiu a sua presença para que a finitude (limitada pelo tempo e pelo espaço)
com as coisas criadas pudessem surgir ou estar. Esta ideia está presente em
alguns textos bíblicos que demonstram a impossibilidade entre o finito e o
infinito, como por exemplo em I Reis 8:10-11, onde lemos: “E sucedeu que,
saindo os sacerdotes do santuário, uma nuvem encheu a casa do SENHOR. E os
sacerdotes não podiam permanecer em pé para ministrar, por causa da nuvem, porque
a glória do SENHOR enchera a casa do SENHOR”. Também em Isaías 8:8 “E passará a
Judá, inundando-o, e irá passando por ele e chegará até ao pescoço; e a
extensão de suas asas encherá a largura da tua terra, ó Emanuel”. Ao mesmo
tempo em Êxodo 40:34 “Então a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória
do SENHOR encheu o tabernáculo”.
A palavra hebraica para espaço e
tempo é olam, a qual significa também universo, ou seja, a totalidade do tempo
e do espaço, mas que também significa ne´elam, esconder. Está incorporada na
língua hebraica a ideia de que espaço e tempo são dimensões da ocultação de
Deus, quem está além do tempo e do espaço. Onde Deus está oculto do universo
poderia ser, experimentalmente e funcionalmente, como se ele não existisse, daí
a sensação que temos da sua ausência; todas as teorias sobre a espontaneidade
da vida surgem por causa da sensação da ausência de Deus. Mas, os verdadeiros
termos da criação envolvem um paradoxo. Sem Deus o universo não poderia
existir; mas, a presença de Deus ameaça a existência de qualquer coisa separada
dele. Em Ex.33:20 está explicita a referida impossibilidade entre o finito e o
infinito: “E disse mais: Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum
verá a minha face, e viverá”.
Agora, vamos procurar entender um
dos conceitos que provocam forte enleio para mentes gregas. O universo foi criado
em seis dias; mas, a criação envolveu sete dias. O sétimo dia é declarado pelo
próprio Deus como Santo. Se na semana da criação Deus traz à existência coisas
finitas, confinadas no tempo e no espaço, as quais incluem o próprio homem, e
se existe a impossibilidade entre o finito e o infinito, então, a cada dia da
semana da criação tornou-se necessária a contração de Deus para que o finito
pudesse estar. A escritora Ellen White em seu livro A Verdade sobre os Anjos,
assinalou que a criação da Terra e especificamente a do homem admirou todo
universo já criado e aos anjos, sendo que o próprio Deus se alegrou com o que
havia criado. Tal ideia nos mostra a razão da criação do sétimo dia, significando
que doravante este dia será uma janela no tempo através da qual nós veremos a
presença de Deus. Neste dia deverá ocorrer a contração da criatura para que
esta possa dar lugar a Deus, uma vez que ambos não ocupam simultaneamente o
mesmo espaço. E como realizamos isto? Renunciando nosso próprio status de
criador. No Shabbat, todo melakha, que é
definido com trabalho criativo, está proibido. No Shabbat nos tornamos mais
passivos do que ativos. Nos tornamos
criaturas, não criadores. Renunciamos o
fazer para experimentar o estarmos feitos. O Shabbat é uma sala que nós fazemos
para Deus no tempo.
Jonathan Sacks em seu
livro Exodus, assinala que Deus criou o homem com capacidade criadora (somos
feitos à imagem de Deus) e, desde então, o homem não cessa de criar. Ao invés
de ficar encolhido diante dos problemas e das ameaças, o homem cria meios para
solucioná-los, inventa tecnologias e muda a sua própria maneira de lidar com o
mundo e, constantemente muda a si próprio tornando-se aquilo que ele mesmo
imagina que é. Invés de ajoelhar-se por causa das doenças que matam e resignar-se
à sorte ele constrói instrumentos, remédios, hospitais e altera o processo
nosológico criando novas possibilidades salvando vidas. Esse poder criador do
homem deverá ser colocado de lado no shabbat para que o criador possa estar com
o homem. Do mesmo modo como Deus se autolimitou na criação, o homem deve também
estar retraído no shabbat. Esta noção aparece completamente em Isaías 58:13-14
“Se desviares o teu pé do sábado, de fazeres a tua vontade no meu santo dia, e
chamares ao sábado deleitoso, e o santo dia do SENHOR, digno de honra, e o
honrares não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria
vontade, nem falares as tuas próprias palavras, então te deleitarás no SENHOR,
e te farei cavalgar sobre as alturas da terra, e te sustentarei com a herança
de teu pai Jacó; porque a boca do SENHOR o disse”.
O cessar o trabalho no shabbat
não significa apenas parar com os afazeres e ir ao culto na igreja. Muitos imaginam
apenas um descanso físico, e esta tese é advogada por muitos teólogos e crentes
sabatistas. O conceito do shabbat está ainda além, é a auto contração do homem
para dar espaço a Deus. Este conceito está explicado em Êxodo 33:17-23 “ Então
disse o SENHOR a Moisés: Farei também isto, que tens dito; porquanto achaste
graça aos meus olhos, e te conheço por nome. Então ele disse: Rogo-te que me
mostres a tua glória. Porém ele disse: Eu farei passar toda a minha bondade por
diante de ti, e proclamarei o nome do SENHOR diante de ti; e terei misericórdia
de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer. E
disse mais: Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha
face, e viverá. Disse mais o SENHOR: Eis aqui um lugar junto a mim; aqui te
porás sobre a penha. E acontecerá que, quando a minha glória passar, pôr-te-ei
numa fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. E,
havendo eu tirado a minha mão, me verás pelas costas; mas a minha face não se
verá”.
Como pode ser verificado, nossa
presença no tempo sabático deve ser discreta para que Deus possa estar nele. Esse
raciocínio provoca uma atitude de reconsideração do nosso comportamento nos
eventos que acontecem nos templos durante o shabbat. Corriqueiramente, há muita
movimentação e exibicionismo humano, fato que não nos deixa contraídos diante
da divindade. Neste sentido, há pouquíssima sabedoria na dinâmica sabática nos
templos onde a figura humana está sempre em evidência, indicando que nossa
capacidade criativa ou criadora não cessou. Se é assim, pouca chance há de
termos tempo de qualidade com Deus onde haja possibilidade de construção humana
e aprendizagem, ou seja, mantemos a impossibilidade entre o finito e o
infinito. Desta maneira, Deus não fala, mas o homem fala e, nestas
circunstâncias passamos o sábado conosco mesmos.
Agora, vamos observar o termo
santo em relação ao tabernáculo. Este era uma tenda que, sempre que montada,
definia um certo espaço como santo, significando estar separado para Deus.
Dentro daquele espaço nada deviria interferir entre o adorador e Deus. O
tabernáculo era uma sala feita para Deus no espaço. As instruções imensamente
detalhadas para a construção e os serviços do tabernáculo distinguiam que nada
em santidade é resultado do empreendimento humano. Ocupar o tempo ou o espaço
santo significa renunciar a criatividade humana, de modo a estar
existencialmente aberto para a criatividade divina. Talvez fosse interessante
ver, pelo menos, um episódio bíblico onde estes conceitos possam estar
manifestos.
Em Levítico 10:1-2 está descrito
o episódio da morte de Nadabe e Abiú, da seguinte maneira: “E os filhos de
Arão, Nadabe e Abiú, tomaram cada um o seu incensário e puseram neles fogo, e
colocaram incenso sobre ele, e ofereceram fogo estranho perante o SENHOR, o que
não lhes ordenara. Então saiu fogo de diante do SENHOR e os consumiu; e
morreram perante o SENHOR”. Este é um episódio muito esclarecedor, pois
supostamente, os filhos de Arão estavam realizando o protocolo estabelecido
para o serviço sacerdotal, ou seja, tomaram o incensário e puseram fogo, e
colocaram incenso. Mas, o texto explica que eles ofereceram fogo estranho
perante o SENHOR. Onde está o fato estranho? Acontece que o fogo utilizado para
a queima do incenso necessariamente deveria ser o do altar que havia sido
acendido por Deus e não pelo sacerdote. Os dois filhos de Arão tomaram brasas
de um fogareiro que era usado para aquecer comida, ou seja, era um fogo
acendido pelo homem. Seria tão grave assim queimar incenso com fogo de um
fogareiro? Fogo é para o homem a força mais poderosa que ele aprendeu a
dominar. Em praticamente tudo o que o homem realiza há fogo envolvido, desde a
comida que come, até a locomoção, desde um simples acender de uma lâmpada até o
voo perigoso de um míssil. Fogo é a mais intensa representação da força
criativa humana e, neste contexto, vir à presença de Deus com toda a sua força
criativa determina a contração de Deus. Esta mesma situação se repete no
sacrifício de Caim.
Santo é o tempo/espaço definido
pela divindade e não pela vontade humana. Nós entramos no domínio de Deus, em
seus termos, não nos nossos. Portanto, terá que haver uma janela, algum ponto
de transparência, na tela entre o infinito e o finito. Isto é o que santidade
significa. Santidade é o espaço que nós construímos para Deus. Santidade é para
a humanidade aquilo que "tzimtzum" é para Deus (Contração divina ou auto
ocultamento). Da mesma forma como Deus oculta a si mesmo para dar espaço para
humanidade, nós devemos ocultar-nos para dar espaço para Deus. Realizamos isto
através de uma temporária renúncia da nossa criatividade no período sabático.
Santidade é aquele limite vazio preenchido pela presença divina. Esta noção ou
ideia de santidade é quase incompreensível para o cristianismo.
Santidade é o espaço que fazemos
(separamos) para heterogeneidade de Deus. Para ouvi-lo, não para falarmos. Para
deixar-se agir e não atuar. Desengajar do fluxo da atividade humana imposta
pelos propósitos humanos no mundo, assim, permitindo espaço para o propósito
divino emergir. Toda santidade é uma forma de renúncia, neste sentido, a guarda
do sábado precisa ser revista pelas congregações que o observam, para que
possam alcançar o verdadeiro descanso.
Para concluir, seria necessário
olhar a sala mais isolada do santuário, o chamado lugar santíssimo. Ali havia a
arca da aliança e dentro desta a lei, a vara de Arão que florescera e o maná.
Sobre a arca estava a tampa ou propiciatório e sobre este, dois anjos com as
asas estendidas e entre estes anjos estava o shekinah, a presença visível de
Deus. O shekinah era como uma esfera luminosa entre os anjos, ou seja, a
contração visível de Deus para que ele pudesse estar entre os homens. Da mesma
forma, a encarnação de Jesus requereu a contração de Deus. “Para que a
pudéssemos contemplar e não ser destruídos, a manifestação de Sua glória foi
velada” (Desejado de Todas as Nações, p.23).
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