Para os cristãos modernos que
estão convencidos da chegada dos tempos finais, estudar o comportamento dos
descendentes da Abraão, pelo menos, desde a sua saída do Egito até a entrada
deles na terra prometida é de fundamental valor. Estamos nós, os atuais cristãos, na
mesma jornada, buscando sair do Egito (as tradições humanas às quais a Bíblia
chama de mundo), passar pelo deserto e entrar na terra prometida. Assim, a experiência
judaica pode nos ensinar o que fazer ou aproveitar, mas, também pode nos
indicar como evitar derrotas.
Um dos mais importantes eventos
ocorridos no passado foi exatamente a maneira poderosa como saíram e
atravessaram o mar Vermelho. Para visualizarmos melhor os acontecimentos e
aproveitarmos da experiência é necessário observar como os
acontecimentos estão narrados no livro de Êxodo. As histórias, pelo menos no
início do livro, estão narradas em uma estrutura literária chamada de quiasma,
na qual o início está repetido no final como se este fora um espelho do início,
tendo o clímax no centro.
O episódio da saída do povo de
Israel do Egito começa com uma batalha e termina com outra batalha, no centro
está a travessia do mar Vermelho. Se nós olharmos com cuidado para a travessia
do mar, encontraremos ali um evento vicário. A história dos israelitas está
dividida em antes da travessia e depois da travessia. Antes estavam no Egito
como escravos sob o domínio de Faraó, depois estavam no deserto (terra de
ninguém) sob o domínio de Deus.
É crucial entender o que ocorreu.
Por que Faraó tentou reescravizar os israelitas? O Egito era belicamente a
nação mais poderosa naquela ocasião. Havia introduzido uma inovação tecnológica
que somente estava disponível aos exércitos egípcios: as bigas (carros puxados
por cavalos). Tal inovação era arrasadora, nenhuma outra nação tinha como
enfrentar os egípcios. Os carros davam enorme velocidade e mobilidade, além de
proteção aos soldados. Agora imaginemos, Faraó tomou seiscentos carros e saiu
para perseguir os israelitas; se exércitos treinados não suportavam o poder
bélico dos egípcios, quanto mais um bando de escravos desorganizados; deste
modo, Faraó não tinha dúvidas que poderia reconquistar os hebreus e,
consequentemente, partiu para cima.
Os israelitas foram encaminhados
por Deus por uma rota que margeava o mar e, nesta condição, estavam no limite
extremo da pressão, ou se lançavam no mar ou voltavam ao Egito. Imaginemos o
terror do povo ao saber que Faraó os buscava com seiscentos carros. “E
aproximando Faraó, os filhos de Israel levantaram seus olhos, e eis que os
egípcios vinham atrás deles, e temeram muito; então os filhos de Israel
clamaram ao SENHOR. E disseram a Moisés:
Não havia sepulcros no Egito, para nos tirar de lá, para que morramos neste
deserto? Por que nos fizeste isto, fazendo-nos sair do Egito? Não é esta a palavra que te falamos no Egito,
dizendo: Deixa-nos, que sirvamos aos egípcios? Pois que melhor nos fora servir
aos egípcios, do que morrermos no deserto” (Êxodo 14:10-12). Moisés respondeu
dizendo: “Não temais; estai quietos, e vede o livramento do SENHOR, que hoje
vos fará; porque aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais os tornareis a ver. O SENHOR pelejará por vós, e vós vos calareis”
(Êxodo 14:13-14). Em outras palavras, Moisés disse ao povo para ficar quieto e
não fazer nada porque Deus iria fazer tudo.
Neste episódio, segundo alguns
comentadores, a liderança dividiu-se em quatro grupos. Um grupo
disse, vamos nos lançar no mar. Outro grupo disse, voltaremos para o Egito.
Outro ainda disse, vamos lutar contra eles. O último disse, vamos gritar e chorar.
Para o primeiro grupo que havia dito vamos nos lançar no mar, Moisés respondeu
permaneçam firmes e verão o livramento que o Senhor trará. Para o grupo que
disse voltemos ao Egito, Moisés afirmou que os egípcios que estavam vendo hoje
nunca mais seriam vistos. Para o grupo que disse vamos lutar contra eles,
Moisés afirmou que o Senhor lutaria por eles e, finalmente, para o grupo que
disse vamos gritar e chorar ele mandou que permanecessem em silêncio. A batalha contra os egípcios foi um ato
divino. Os carros não podiam avançar, pois as rodas quebravam e atolavam, mas,
além disso, “o anjo de Deus, que ia diante do exército de Israel, se retirou, e
ia atrás deles; também a coluna de nuvem se retirou de diante deles, e se pôs
atrás deles. E ia entre o campo dos
egípcios e o campo de Israel; e a nuvem era trevas para aqueles, e para estes
clareava a noite; de maneira que em toda a noite não se aproximou um do outro”
(Êxodo 14:19-20). Deus então ordena que Moisés estenda as mãos por sobre o mar
“e o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental toda
aquela noite; e o mar tornou-se em seco, e as águas foram partidas” (Êxodo
14:21).
Agora vamos entender o que ocorreu com o mar. Segundo os
relatos sagrados o mar ficou dividido e duas paredes de água congeladas verticais dividiram o mar em duas peças. Este fato carrega um importante
simbolismo que nos remete a uma antiga cerimonia para celebrar alianças. O
Rabino Jonathan Sacks explica em seu livro Exodus que a palavra chave ou o
verbo chave nas alianças é cortar. Quando se pretendia fazer uma aliança alguns
animais eram divididos ao meio e as partes que entravam em aliança ficavam entre
as bandas dos animais. Segundo Sacks, a divisão de coisas normalmente unidas permanecia
como símbolo da unificação de entidades (pessoas, tribos, nações) previamente
divididas. Tal explicação está relacionada a Gênesis 15:9-18: “E disse-lhe:
Toma-me uma bezerra de três anos, e uma cabra de três anos, e um carneiro de
três anos, uma rola e um pombinho. E
trouxe-lhe todos estes, e partiu-os pelo meio, e pôs cada parte deles em frente
da outra; mas as aves não partiu. E as
aves desciam sobre os cadáveres; Abrão, porém, as enxotava. E pondo-se o sol, um profundo sono caiu sobre
Abrão; e eis que grande espanto e grande escuridão caiu sobre ele. Então disse a Abrão: Sabes, de certo, que
peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à
escravidão, e será afligida por quatrocentos anos, mas também eu julgarei a
nação, à qual ela tem de servir, e depois sairá com grande riqueza. E tu irás a teus pais em paz; em boa velhice
serás sepultado. E a quarta geração
tornará para cá; porque a medida da injustiça dos amorreus não está ainda
cheia. E sucedeu que, posto o sol, houve
escuridão, e eis um forno de fumaça, e uma tocha de fogo, que passou por
aquelas metades. Naquele mesmo dia fez o
SENHOR uma aliança com Abrão, dizendo: À tua descendência tenho dado esta
terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates”.
No mar Vermelho os israelitas passaram entre duas peças de
águas e não de animais, como ratificação da aliança efetuada com Abraão. De
acordo com o Rabino Sacks, eles passaram de um domínio para outro, de escravos
de Faraó para servos de Deus. Esta experiência é a mesma vivida pelo indivíduo
que recebe o batismo de imersão. O seu corpo ao ser mergulhado divide a água em
duas peças e, deste modo, é realizada uma aliança com Deus. Ao emergir, ele
passou pelo mar, ou seja, saiu do domínio do mundo e entrou no domínio de Deus.
Agora no deserto, terra de ninguém, ele está livre para escolher a quem vai
servir, ou seja, após o batismo por imersão, uma vez que uma aliança foi
realizada com Deus, o indivíduo estará pronto para guardar os mandamentos e não
deverá retornar ao Egito. A travessia do mar Vermelho (batismo) é um ato de consolidação
de aliança e transferência de possessão, o indivíduo agora é possessão de Deus
e não mais de Faraó (mundo). Entrou em novo território não geográfico mas existencial.
O que isto significa?
Em Êxodo 17:8-13 está
relatada a outra batalha que os israelitas tiveram que enfrentar após a
travessia. Leiamos: “Então veio Amaleque, e pelejou contra Israel em Refidim. Por isso disse Moisés a Josué: Escolhe-nos
homens, e sai, peleja contra Amaleque; amanhã eu estarei sobre o cume do
outeiro, e a vara de Deus estará na minha mão. E fez Josué como Moisés lhe dissera, pelejando
contra Amaleque; mas Moisés, Arão, e Hur subiram ao cume do outeiro. E
acontecia que, quando Moisés levantava a sua mão, Israel prevalecia; mas quando
ele abaixava a sua mão, Amaleque prevalecia. Porém as mãos de Moisés eram pesadas, por isso
tomaram uma pedra, e a puseram debaixo dele, para assentar-se sobre ela; e Arão
e Hur sustentaram as suas mãos, um de um lado e o outro do outro; assim ficaram
as suas mãos firmes até que o sol se pôs. E assim Josué desfez a Amaleque e a
seu povo, ao fio da espada.
Conforme o relato, Deus não lutou, desta vez, pelo povo, mas,
comandou que lutassem. Antes da travessia Deus lutara, mas, agora, o povo devia
lutar por si. O que nos chama atenção é que o líder Moisés foi para o outeiro
com a vara de Deus nas mãos. Enquanto permanecia com as mãos levantadas, Israel
prevalecia, se baixava as mãos, Ameleque prevalecia. Tal descrição nos leva a
supor ter havido mais milagres, no entanto, não havia milagres nas mãos de
Moisés levantadas, apenas suas mãos apontavam na direção dos céus onde os
israelitas deveriam colocar seu olhar e seu coração. A diferença aqui é que
Deus não atuou externamente modificando a natureza atolando os carros e
cavalos, abrindo o mar Vermelho, tal qual fizera na primeira batalha antes da
travessia, mas, enquanto os israelitas dirigiam seu olhar e suas mentes para
cima, alcançavam força interior e fé para prevalecer. Aqui vemos uma clara
transição no formato de atuação de Deus; ocorreu uma mutação no interior dos
israelitas, mostrando a grandeza da presença divina no interior do homem. Os
israelitas não foram vencedores porquanto Deus lutara por eles, mas Deus deu-lhes
força para lutar por si mesmos. Deus não estava entre, mas dentro. Esta é a
mudança crucial que ocorre quando atravessamos o mar, ou seja, nos batizamos.
Deus deseja que lutemos nossas próprias batalhas, não que estejamos abandonados,
apenas que ele estará conosco onde e quando estivermos nele. Será necessário o
desenvolvimento de qualidades tais como coragem, confiança, determinação,
vontade as quais nos permitirão encontrar nossa superioridade como seres criados
à imagem de Deus. (Este texto está baseado no capítulo “The turning Point” do
livro Exodus do Rabbi Sir Jonathan Sacks).
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