A igreja cristã vem sofrendo, ao
longo das eras, muitas interferências que fazem perder de vista assuntos
fundamentais, provocando deriva e inércia na consecução dos objetivos traçados
por Deus. Uma dessas situações foi o quase desprezo dos cristãos pelo Antigo
Testamento (AT). Dizem alguns teólogos cristãos que o AT está adstrito à
dispensação judaica. A era cristã está ligada ao Novo Testamento (NT) que,
inclusive, tem pouco a ver com o AT (noção equivocada, pois o NT é uma
aplicação do AT). Por essa razão, as interpretações das ordens divinas sofrem
contextualizações que consideram primordialmente a ética e a consciência social coletiva das
épocas.
A desconsideração ao AT facilitou
ao inimigo de Deus interferir na igreja cristã tornando-a não mais que uma agremiação
de amigos que dizem amar a Jesus, ao invés de um grupo de humanos que decidiram
amar a Deus e observar os seus comandos motivados pelo esclarecimento da
vontade divina que tem sua base no AT.
O que a era cristã trouxe de novo e que não estava previsto
no AT?
A igreja de Deus nos tempos do AT
esperava o Messias. A igreja cristã tem o Messias e sua narrativa histórica,
além de esperar o seu retorno. A espera do retorno torna necessário que o
cristianismo volte sua atenção para os tempos anteriores a primeira vinda do Messias.
Um olhar perscrutador sobre o tipo de culto religioso judaico é fundamental
para que a cristandade entenda como cultuar a Deus antes do seu retorno.
O sistema sacrifical foi o culto
instituído por Deus quando o pecado entrou no mundo (Gên. 4:3-4), e serviu
durante séculos subsequentes como uma lembrança de que o salário do pecado é a
morte e que a vida eterna pode ser alcançada unicamente como um dom divino
(Rom. 6:3). Por muitos séculos o cabeça de cada família era o sacerdote, mas,
no monte Sinai, uma provisão sistemática foi feita para os vários tipos de
sacrifícios, e todos passaram a ser oferecidos pelo sacerdote formal. É importante lembrar que os sacrifícios e
ofertas eram produtos animais ou oriundos da agricultura (obras de Deus), como uma expressão de
adoração, de gratidão e de dedicação, além de ser expiação pelos pecados.
Toda noção de culto e de expiação
era cabalmente explicada no ritual do antigo tabernáculo erguido por Deus no
deserto através de Moisés. O processo da expiação no sistema sacrifical se dava
em três etapas: a) oferta pelo pecado; b) holocausto; c) oferta pacífica.
A oferta pelo pecado tinha como
propósito a expiação dos pecados cometidos contra Deus. Geralmente, tais
pecados passam despercebidos e, por essa razão, era oferecido o referido sacrifício
pelo sacerdote em ocasiões específicas, tais como: Lua nova (Num. 28:15), festa
dos pães sem levedura (Num. 28:17), pentecostes (Num. 23:19; 28:26-30), ano
novo (Num.29:5), festa das cabanas (Num.29:12-34). Também podiam ser oferecidos
por outros motivos.
O importante é compreender o processo desse tipo de
sacrifício (Lev. 4:32-35):
1) 1. O
pecador traz o cordeiro. É importante notar que ao trazer o cordeiro ou assumir
as custas do sacrifício, o pecador significava portar sincero desejo de busca
fervorosa por auxílio.
2) 2. Porá
a mão sobre a cabeça da oferta e a imolará. Ao impor a mão sobre o animal, este
passava a ser dedicado ao Senhor tornando-o representante pessoal ou substituto
do ofertante; o cordeiro era Jesus que seria o substituto da humanidade. O
texto bíblico de Levítico diz que a oferta deveria ser imolada no local onde é
oferecido o holocausto. Assim, no altar do holocausto no pátio do tabernáculo.
Importante lembrar que o holocausto simbolizava a entrega completa, a dedicação
e a adoração, portanto, a negação de qualquer ligação com o mundo e com as suas
ideias. O próprio pecador imolava o cordeiro, ou seja, a si próprio,
significando que sinceramente entregava a sua vida para cumprir a justiça da
lei.
3) 3. O
sacerdote, com o dedo, tomará do sangue e porá nos chifres do altar do
holocausto. Havia quatro chifres, um em cada ângulo do altar, os quais
significavam o poder de Deus em realizar expiação considerando as exigências da
lei, uma vez que não há perdão sem derramamento de sangue.
4) 4. O
restante do sangue derramará na base do altar. O sangue derramado na terra
significava a morte do pecador e expiação pela terra, uma vez que as ofensas
morais mancham a terra, a qual é propriedade de Deus.
5) 5. Tirará
toda gordura como se tira a gordura do cordeiro do sacrifício pacífico. A
gordura deveria ser queimada porque significa o acumulado por causa da cobiça.
Era cheiro suave em virtude da simbologia que identificava a entrega das
questões pessoais e do egoísmo. No diálogo com o moço rico, Jesus pede que ele
queime as gorduras, mas ele não o fez.
6) 6. Queimará
a gordura sobre o altar em cima das ofertas queimadas do Senhor. Essa ordem é
profundamente significativa. Conforme acima, a gordura queimada implicava a
entrega do eu. Este ato, no âmbito do sacrifício pelo pecado, sendo conduzido
sobre as ofertas queimadas, também significava submissão total, adoração (estar
de acordo com o comando de Deus), e gratidão, esta última reconhece a
misericórdia de Deus.
7) 7. Fará
expiação. É imprescindível entender que expiar é colocar tudo em ordem com quem
foi ofendido. Então, o sacrifício pelo pecado, que era oferecido ou gerenciado
pelo sacerdote (representando a Deus, portanto era Deus agindo), objetivava consertar,
por iniciativa divina, o que estava errado nas relações humano-divinas, sendo
importante notar que é a pessoa ofendida quem positiva o perdão.
O importante agora é a
contemporaneidade do VT. Jesus fez o sacrifício pelo pecado quando da sua crucifixão.
Sobre ele a humanidade impôs as mãos transferindo as culpas. O sangue foi
colocado sobre o altar (Deus aceitou o sangue de Jesus na condição de nosso
substituto) e derramado na terra. Agora resta-nos queimar a gordura. À igreja
cristã não mais era necessário sacrificar animais, pois Jesus fez o sacrifício
fazendo cessar o de animais. Porém, o queimar das gorduras tem que ser
executado. Cessar com práticas egoístas, tendo ciência do dever em relação aos
desamparados e aflitos, a manutenção dos serviços religiosos por contribuição
sistematizada, o cumprimento dos deveres familiares, são alguns dos vieses
demandados aos cristãos; a queima da gordura ou o serviço cristão. Uma vez que
Deus se dispôs a conceder o perdão através da cruz, devemos nós tomar cada um a
sua cruz, viver nova vida concordante com o sistema divino e desprezar a mundo
e sua concupiscência.
Entretanto, o sistema sacrifical
do AT previa outro tipo de sacrifício, o chamado holocausto. Este deveria ser
oferecido duas vezes ao dia: pela manhã e pela tarde. Ali, um cordeiro de um
ano era queimado sobre o altar acompanhado de ofertas de manjares. O holocausto
simbolizava: a) consagração a Deus; b) constante necessidade do sangue
expiatório de Jesus.
A consagração implica em abandono
de todos os pressupostos mundanos. A vida egoísta não mais poderá preponderar.
O sistema de Deus deverá ser o motor da vida. O holocausto tinha uma
característica explícita: o cordeiro era inteiramente queimado, significando
que o pecador se deixava consumir pelo fogo refinador do Espírito Santo,
morrendo e desaparecendo para o mundo. Nenhuma das necessidades egoístas
deveria sobejar. Sendo que nossa natureza egoísta, mesmo que combatida, não
desaparece, em virtude de correr em nossas veias o sangue humano contaminado
pelo sistema moral do inimigo, logo, há necessidade constante do sangue
expiatório de Jesus, porque é a energia capaz de gerar comportamento compatível
com as exigências celestes. Essa noção não é apenas retórica, mas, se
materializa na razão direta da cópia do comportamento de Jesus. O uso da
simbologia do sangue dá-se pelo fato de ser o sangue o tecido que gera toda
energia que nos movimenta. Se o sangue, ou seja, o comportamento for o de
Jesus, então o sangue expiatório, aquele que coloca as coisas em ordem com o
reino de Deus, ou o comportamento que é compatível com as expectativas divinas
fará expiação em nossas vidas.
Jesus, ao ser crucificado, também
ofereceu holocausto. É importante ter em mente que o holocausto era oferecido
no santuário duas vezes ao dia, significando que haveria cobertura de
misericórdia sempre, uma vez que a humanidade é agudamente e constantemente corrupta.
Entretanto, o holocausto oferecido diariamente no tabernáculo e que cobria a
nação, era de forma pro tempore, pois cada israelita deveria oferecer
seu holocausto pessoal, ao menos, uma vez no ano e, deste modo, buscar sua própria
expiação.
Voltando ao holocausto
apresentado por Jesus na cruz, esse sacrifício suspendeu o oferecimento contínuo
no tabernáculo, porque foi um sacrifício vicário. De uma vez por todas, a
humanidade inteira estava coberta pela misericórdia. Todavia, esse foi um gesto
unilateral de Deus, necessitando da aceitação de cada indivíduo criado. Logo, o
holocausto contínuo do tabernáculo cessou, mas, o holocausto pessoal, esse
necessita ser concretizado. O apóstolo Paulo fez uma advertência sobre a
referida necessidade no ambiente cristão: “ROGO-VOS, pois, irmãos, pela
compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e
agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não sede conformados com este
mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que
experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus” (Romanos
12:1-2).
O holocausto pessoal para os
cristãos é, claramente a não conformidade com este mundo, porém a renovação do
pensamento ou das ideias que, de modo geral, são conformadas pelas noções de
individualismo que a cultura coletiva impõe.
Terminamos essas breves
considerações com a seguinte citação do livro Caminho a Cristo da autora Ellen
White (p.18): “É-nos impossível, por nós mesmos, escapar ao abismo do pecado em
que estamos mergulhados. Nosso coração é ímpio, e não o podemos transformar.
“Quem do imundo tirará o puro? Ninguém!” Jó 14:4. “A inclinação da carne é
inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o
pode ser.” Romanos 8:7. A educação, a cultura, o exercício da vontade, o
esforço humano, todos têm sua devida esfera de ação, mas neste caso são
impotentes. Poderão levar a um procedimento exteriormente correto, mas não
podem mudar o coração; são incapazes de purificar as fontes da vida. É preciso
um poder que opere interiormente, uma nova vida que proceda do alto, antes que
os homens possam substituir o pecado pela santidade. Esse poder é Cristo. Sua
graça, unicamente, é que pode avivar as amortecidas faculdades da alma, e
atraí-la a Deus, à santidade”.