Da perspectiva humana, frequentemente
ver é a mais precisa forma de conhecimento quando comparado com o ouvir. Mas,
na verdade, ouvir traz maior poder do que ver. A visão revela aspectos
externos das coisas, mas, ouvir revela o interior ou partes vitais de uma ideia.
Em Deuteronômio 27:9 vemos o aspecto que prevalece com Deus: Guarda silêncio e ouve, ó Israel!
Embora Deus não possa ser visto por
humanos, Ele pode ser ouvido, e ouvir representa um encontro profundo, mais
íntimo e transformacional do que ver.
Ver e ouvir fornecem-nos um ponto de
entrada em uma das mais importantes e menos compreendidas diferenças entre duas
grandes civilizações do mundo ocidental, denominadas na literatura como helenismo
e antigo Israel.
A Grécia do 5º ao 3º séculos AC foi, em
muitos aspectos, a maior cultura da antiguidade. Ela se destacou nas artes,
arquitetura, escultura, no teatro, em suma, nas artes visuais. Nestas adquiriu
uma grandeza nunca suplantada. O mais brilhante florescimento artístico
subsequente da Europa foi o renascimento na Itália, o qual foi essencialmente
uma redescoberta do mundo de aptidões da Grécia antiga.
Os judeus não se destacaram em
nenhuma dessas coisas, mas, sua contribuição ao ocidente foi proeminente e
transformadora. A razão é que seu interesse repousa completamente em outro
lugar, não na visão, mas no som, não em ver, mas na audição.
Judaísmo é o supremo exemplo de uma cultura não
dos olhos, mas dos ouvidos.
Isto interessa absolutamente ao cristianismo.
É assim que Hans Kohn um filósofo e
historiador americano, mas, de origem judaica, o qual foi pioneiro em estudos
acadêmicos sobre nacionalismo no século XIX, coloca em sua obra “The Idea of
Nationalism”. Em sua opinião, os gregos antigos foram o povo da visão, do senso
espacial e plástico, como se pensassem em transpor os elementos fluidos,
fugazes, sempre relacionando os elementos da vida no repouso, no espaço, na
limitação... Os judeus não viram tanto quanto ouviram, seu órgão primaz era
o ouvido, não os olhos.
Quando Elias percebeu Deus, ele ouviu
somente uma suave e mansa voz. Por essa razão não há, no mundo judaico, uma
imagem de Deus. Os cristãos, em sua carência de cultura judaica, assimilam o
mundo visual e, embora não cultuem imagens, tornam seus serviços eclesiais excessivamente
visuais e sensoriais.
Sendo o povo do ouvir, a palavra
chave do judaísmo é shema. Deus não é algo que vemos, mas, uma
voz que ouvimos. É assim como Moisés descreve a suprema revelação no monte
Sinai em Deuteronômio 4:12: “Então o SENHOR vos falou do meio do fogo; a voz
das palavras ouvistes; porém, além da voz, não vistes figura alguma”. Isto tem profundas implicações para o judaísmo
como todo e consequentemente, para a cristandade. A maneira como Moisés compreende
o mundo e relata-o é fundamentalmente diferente daquela dos gregos e da
tradição filosófica (Sócrates, Platão, Aristóteles, entre outros) que fundaram.
Uma cultura baseada no ouvir não é a mesma que uma cultura fundamentada no ver.
Até hoje, o ocidente, quando fala de
compreender, usa metáforas do ver. Nós falamos de visão, previsão,
retrospectiva quando fazemos uma observação, falamos de pessoa de visão. Quando
expressamos uma opinião, nós dizemos, “A mim me parece que”. Quando queremos
que alguém esteja concentrado, dizemos, “OLHE”. Quando compreendemos algo,
dizemos Eu vejo. A palavra ideia vem da mesma raiz da palavra vídere. Tudo vem
ao ocidente a partir da Grécia.
Na Bíblia hebraica, por contraste, ao
invés de ver alguém pensa, o verso irá dizer que alguém está dizendo no seu
coração. Pensar não é uma forma de enxergar, mas de falar. Para os gregos,
verdade é o que vemos, para os judeus, é o que ouvimos.
As culturas pagãs veem Deus, ou além
disso os deuses. Eles são realidades visíveis: o sol, a tempestade, a terra, o
mar, as grandes forças que nos rodeiam e reduzem-nos a um senso de
insignificância. A imaginação politeísta vê a realidade como uma luta de forças
poderosas, cada qual completamente indiferente ao fato da humanidade.
Um mudo confinado ao visível é um
mundo impessoal, não habilitado a ouvir nossas orações, cego às nossas
esperanças, um mundo sem significado global, no qual somos temporários
inesperados, com obrigação de proteger a nós mesmos, tal como melhor pudermos,
contra as crueldades randômicas do acaso. A cultura secular dominada pela
televisão, smartphones, tablets e telas de computadores, é massivamente visual,
um mundo de imagens e ícones que se interpõe contra o ouvir. Tais tecnologias
podem significar barreiras quase imperceptíveis ao Shema.
O Judaísmo, por contraste, é o
supremo exemplo de pessoas centradas na civilização e pessoas se comunicam por
palavras. Elas falam e ouvem.
Conversação une alma com alma. Nós nos comunicamos, portanto, comungamos. Mas,
os cristãos levam celulares para seus recintos de adoração, onde a máxima é
ouvir. Se imagens prejudicam a compreensão das várias dimensões do Altíssimo, o
uso de celulares nos cultos limita mais nossa relação com Deus, uma vez que
alimentamos a percepção da forma em detrimento da operação intelectual em que
um objeto de reflexão é isolado de fatores que comumente lhe estão relacionados
na realidade.
Os patriarcas e profetas do antigo
testamento foram os primeiros a compreender que Deus não é parte do mundo
visível, mas está muito além dele. Portanto, tem todo sentido a proibição
contra o culto de imagens, estas são representações visuais. Daí também o
grande encontro entre Deus e o profeta Elias no monte Horeb: (I Reis 19:11-13)
E Deus lhe disse: Sai para fora, e
põe-te neste monte perante o SENHOR. E eis que passava o SENHOR, como também um
grande e forte vento que fendia os montes e quebrava as penhas diante do
SENHOR; porém o SENHOR não estava no vento; e depois do vento um terremoto;
também o SENHOR não estava no terremoto;
E depois do terremoto um fogo; porém
também o SENHOR não estava no fogo; e depois do fogo uma voz mansa e delicada.
E sucedeu que, ouvindo-a Elias,
envolveu o seu rosto na sua capa, e saiu para fora, e pôs-se à entrada da
caverna; e eis que veio a ele uma voz, que dizia: Que fazes aqui, Elias?
Podemos ver uma tormenta, um fogo, um
terremoto, mas não podemos ver uma mansa e suave voz.
Na verdade, mesmo quando a Bíblia
está falando sobre a visão, muitas vezes não é o caso. Por exemplo, o livro de
Isaías abre com as palavras, A visão de Isaías, mas continua, “Ouvi, ó céus, e
dá ouvidos, tu, ó terra!” Deuteronômio 11:26 começa com as palavras “Eis que
hoje eu ponho diante de vós a bênção e a maldição”, mas, então, imediatamente
continua:” A bênção, quando ouvirdes os mandamentos do SENHOR vosso Deus, que
hoje vos mando; Porém a maldição, se não ouvirdes os mandamentos do SENHOR
vosso Deus, Assim, na Bíblia, o ver é uma forma de ouvir. Isto tem grandes consequências para o
cristianismo, a maior das quais é o coração da nossa realidade pessoal: o Deus
que nos fala em revelação e a quem nós falamos em oração.
Fé no cristianismo não tem a ver com
ontologia (aquilo que existe) ou epistemologia (o que nós sabemos ou
conhecemos) mas, com relacionamentos com as pessoas com quem conversamos. Nossa
humanidade se sustenta na habilidade para nos comunicar através de palavras. Portanto,
A fé vem pelo ouvir. Quando dizemos que temos fé em Cristo, afirmamos que cremos nas suas palavras e as praticamos. O que ocorre na prática é a comunicação entre Cristo e nós outros.
Sigmund Freud, quem teve uma
conturbada relação com o judaísmo, divisou a melhor cura judaica já inventada.
A despeito do fato de ter chamado de psicanálise, ele estruturou a cura pela fala, isto é, de
fato a cura pelo ouvir: é a habilidade do analista para ouvir que ajuda o
paciente a trazer para articulação sentimentos que, de outro modo, ficariam escondidos no silêncio.
A ênfase em ouvir permanece no
coração da singular intimidade do povo de Deus em relação a divindade. Em
termos de poder, não há relação possível entre um criador infinito e suas
finitas criaturas. Mas em termos de fala, há. Deus pergunta-nos, tal qual perguntou
a Adão no Jardim, onde você está? Porque há fala, há relacionamento. Entre dois
seres que podem se comunicar há uma conexão, mesmo quando um é infinitamente maior
e o outro infinitamente pequeno. PALAVRAS LIGAM ABISMOS METAFÍSICOS ENTRE ALMA
E ALMA.
Uma vez que compreendemos isso, o
significado de muitas passagens bíblicas torna-se claro. A grandeza de Deus
está em que Ele ouve o esquecido. Um exemplo aparece em Gênesis 21:17 “E ouviu
Deus a voz do menino, e bradou o anjo de Deus a Agar desde os céus, e
disse-lhe: Que tens, Agar? Não temas, porque Deus ouviu a voz do menino desde o
lugar onde está”. A grande legislação social em Êxodo estabelece (Ex.22:25-27)
“Se emprestares dinheiro ao meu povo, ao pobre que está contigo, não te haverás
com ele como um usurário; não lhe imporeis usura. Se tomares em penhor a roupa
do teu próximo, lho restituirás antes do pôr do sol, porque aquela é a sua
cobertura, e o vestido da sua pele; em que se deitaria? Será, pois, que, quando
clamar a mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso”. Assim, ouvir é a base
da justiça e da compaixão.
Quando a Torá quer comunicar a
degradação dos israelitas no Egito, diz: “Eles não ouviram a Moisés por causa
da angústia de espírito e da dura servidão”. Eles não podiam ouvir as boas
novas de sua repentina libertação.
Quando Salomão pediu a Deus pelo maior dos dons que Ele poderia dar,
disse “A teu servo, pois, dá um coração que saiba ouvir para julgar a teu povo,
para que prudentemente discirna entre o bem e o mal; porque quem poderia julgar
a este teu tão grande povo?”
Ouvir é uma arte, uma habilidade, uma
disciplina religiosa,
o mais profundo reflexo do espírito humano. Aquele que verdadeiramente ouve
pode, às vezes, escutar os infrassons do mundo, a fala profunda do universo, a
canção da criação cantada ao seu criador: (Salmo 19: 1-4)
1 OS céus declaram a glória de Deus e
o firmamento anuncia a obra das suas mãos.
2 Um dia faz declaração a outro dia,
e uma noite mostra sabedoria a outra noite.
3 Não há linguagem nem fala onde não
se ouça a sua voz.
4 A sua linha se estende por toda a
terra, e as suas palavras até ao fim do mundo.
No silencio do deserto os israelitas estavam
habilitados a ouvir a palavra. Aquele que é treinado na
arte de ouvir pode ouvir a voz de Deus, assim como o grito silencioso, do
solitário, do aflito, do pobre, do necessitado, do negligenciado, do esquecido.
Porque a fala é o mais pessoal de todos os gestos, e o ouvir o mais humano, e
ao mesmo tempo, o mais divino de todos os dons. Deus ouve e pede que ouçamos.
Esta é a razão do maior dos comandos
“Ouve, Israel”. Agora nós podemos compreender por que fechamos os olhos
quando oramos.
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