Compreendemos o livro de Números
no seu todo? É dos cinco livros de Moisés o mais difícil, o mais desafiador.
Contém uma extraordinária gama de textos e assuntos. Ele inicia no ponto em que
deixamos a história no final do livro do Êxodo. Naquele ponto, o povo tinha
deixado o Egito e jornadeado até o monte Sinai. Lá eles receberam a Torah. Lá
eles fizeram o bezerro de ouro. Lá eles foram perdoados após a súplica
apaixonada de Moisés, e lá eles fizeram o tabernáculo (MISHKAN). Este fora
inaugurado no 1º dia do 1º mês no segundo ano (Êx. 40:17). O livro de Números
começa um mês depois, no 1º dia do segundo mês do segundo ano (Num.1:1). Após
uma prolongada permanência no deserto do Sinai, o povo estava pronto para
começar a segunda parte da jornada, do deserto à terra prometida (a primeira
foi do Egito ao Sinai).
Porém, o livro de Números não parte do
começo da segunda jornada. Há um retardamento na narrativa. Os dez capítulos iniciais
não relatam o começo da viagem (Num. 10.33). O que os estava detendo? Ou melhor,
o que estava fazendo a história andar mais devagar? Antes de podermos juntar o
povo à sua jornada, teremos que ler sobre o censo. Então vem uma descrição do
arranjo das tribos ao redor do tabernáculo (Ohel
Moed) a tenda da reunião. Há uma longa descrição dos Levitas, suas
famílias, e respectivos papeis. Há leis a respeito da pureza do acampamento,
leis sobre restituição de roubos, leis sobre uma mulher suspeita de adultério,
e o nazireato. Neste espaço excessivo lemos ainda sobre os dons trazidos pelos
príncipes das tribos na inauguração do tabernáculo. Então vem mais passagens
descrevendo a preparação final da jornada. Somente então a jornada começa. Por que essa longa série de digressões?
Uma característica dos livros de
Moisés (Torah) que confundiu os estudiosos bíblicos durante, pelo menos, dois
séculos é que eles constituem um único gênero. Eles não são história no senso
convencional, um mero relato do que aconteceu. Um excelente exemplo é o livro
de Números, o qual silencia sobre quase trinta e oito anos dos quarenta anos no
deserto. Os eventos não são descritos na Torah simplesmente porque aconteceram.
Eles estão narrados porque ensinam sobre a condição humana sob Deus. A
Torah também não é um tipo convencional de livro da lei. Há substantivas
similaridades entre certas leis bíblicas e outros códigos antigos tal como o de
Hammurabi. Um importante distintivo é que a Torah se move da lei para a
narrativa e da narrativa para lei novamente; a narrativa jurídica é interrompida
por histórias e, ao mesmo tempo, as histórias são descontinuadas por leis. Ela
intercala outros tipos de materiais. No caso de Números, inclui uma lista
do censo, um itinerário, alguns casos judiciais reais, relatos de batalhas, uma
canção de vitória sobre os Amorreus, e
os oráculos de um não israelita, Balaão. Embora a Torah contenha leis, ela não
se assemelha a qualquer código de leis.
Estudiosos bíblicos têm buscado
entender o texto desmembrando-o, separando-o em fragmentos menores e tentando
entende-los isoladamente. Isto é um erro: é precisamente como não ler um livro.
Nós não entendemos uma sinfonia desagregando seus temas musicais. É
precisamente o modo como a partitura os une, geralmente com tensão e mudanças
de humor, o que constitui a sinfonia como uma unidade artística. Do mesmo modo
com a Torah – com pelo menos esta diferença: nós não temos nada comparável a
ela, nada nem mesmo na literatura religiosa antiga, nem tampouco com outros
livros da Tanakh (Torah são os cinco livros de Moisés, a Tanakh outros livros
bíblicos).
Não há nada acidental na mistura
entre lei e narrativa na Torah. A propósito, a Torah reflete a compreensão israelita de Deus como a
unidade sobre a diversidade. Se tudo o que podemos ver é a diversidade, não a
unidade, não compreendemos a Torah como um todo.
A Torah oferece um contraste
único com a forma de pensamento que consideramos como distintamente ocidental,
cujas origens estão na Grécia antiga. Ela mostra três coisas incomuns: primeiro, inclui filosofia no modo narrativo. Ela ensina a verdade não como um sistema,
mas como história. Segundo, ela retrata a lei não como reflexo da vontade ou a
sabedoria do legislador, mas tal como a lei emerge na história, como se
dissesse: isso é o que deu errado no passado, e isto é como evitar no futuro.
Terceiro, ela considera a história em si como um comentário sobre a condição
humana. A Torah trata das verdades que emergem através do tempo.
Há grandes diferenças
entre antigo Israel e a Grécia antiga. A Grécia antiga procurava a verdade na
contemplação da natureza e da razão. A contemplação da natureza deu origem à
ciência, a contemplação da razão deu origem à filosofia. O antigo Israel
encontrou a verdade na história, nos eventos e no que a Torah nos convida a
aprender com eles. Ciência tem a ver com a natureza; judaísmo e, consequentemente, cristianismo, tem a ver com
natureza humana. Há uma grande diferença entre os dois.
Natureza não cogita sobre livre
arbítrio. Cientistas frequentemente negam que exista livre arbítrio. Mas, a humanidade
está estabilizada por sua liberdade. Nós somos o que escolhemos ser. Nenhuma
planta escolhe ser hospitaleira. Nenhum peixe escolhe viver na água. Nenhum
pavão escolhe ser vaidoso. Humanos fazem escolhas, e neste fato nasce o drama sobre
o qual a Torah inteira é um comentário: como pode a liberdade coexistir com a
ordem? O drama está montado no palco da história, e se desenrola através de
quatro atos, cada um com várias cenas. A forma básica da narrativa é
praticamente a mesma em todos os quatro casos. Primeiro Deus cria a ordem.
Então as pessoas criam o caos. Terríveis consequências seguem. Deus começa novamente,
às vezes profundamente triste, mas nunca perdendo sua fé em uma forma de vida
na qual ele colocou sua imagem e à qual Ele deu o dom singular que tornou a
humanidade parecida com Deus, ou seja, a liberdade.
O Ato 1 está contado em Genesis
1-11. Nesta versão da história, o assunto é a humanidade como um todo. Deus
cria um universo ordenado e molda os seres humanos do pó da terra nos quais ele
sopra seu próprio fôlego. Mas, os humanos pecam – Primeiro Adão e Eva, então
Cain, depois a geração do dilúvio. Deus traz um dilúvio e recomeça novamente,
fazendo uma aliança com Noé. A humanidade ainda não aprendeu a lição. O povo
peca novamente, desta vez não por ser menos do que humano (violentos) mas por
buscar ser mais que humano, construindo uma torre que encontraria o céu (Gen.
11:1), e por impor uma unidade artificial (uma língua com palavras uniformes)
na diversidade humana.
Assim, Deus começa novamente. O Ato
2 está contado em Gênesis 12-50. É a história da família da aliança: Abraão e
Sarah e três gerações de descendentes. A nova ordem está baseada na família e
na fidelidade, no casamento e no parentesco, no amor e confiança, na educação dos
filhos nos caminhos do Senhor, como expressos na caridade e justiça (Gen.
18:19). Mas, isto também começa a falhar. Há uma tensão entre Esaú e Jacob,
entre as esposas de Jacob, Leah e Raquel, e entre seus filhos. Dez filhos de
Jacob vendem o décimo primeiro, José, como escravo. Isso é uma ofensa contra
liberdade, e uma catástrofe segue – não por dilúvio, mas por uma fome; como resultado
a família de Jacob vai exilada para o Egito, sendo eventualmente escravizada.
O Ato 3, colocado no livro de
Êxodo, diz respeito aos israelitas como uma nação em aliança com Deus. Começa
com o resgate dos israelitas do Egito do mesmo modo como Ele resgatou Noé do
dilúvio. Sua aliança com eles no monte Sinai é muito mais extensiva do que as
duas predecessoras, a primeira com Noé e depois com Abraão. Trata-se de um
plano arquitetônico para uma ordem social com base na lei e na justiça,
informado pela memória do povo, da forma como eles foram tratados no Egito. Sua
sociedade seria diferente. Eles não imporiam aos outros o que lhes fora
imposto. Por segurança, não seria abolida a escravidão (isto não aconteceu por
trezentos anos), nem poriam fim às guerras (não havia acontecido nenhuma
guerra). Mas, envolveria a aceitação pelo povo da soberania de Deus. Quase
imediatamente a aliança ficou perto de ser inteiramente danificada, quando os
israelitas fizeram o bezerro de ouro, meros quarenta dias após a grande
revelação. Deus ameaçou destruir a nação toda, começando novamente a partir de
Moisés, do mesmo modo com o fez com Noé e Abraão (Ex. 32:10). Somente o apelo
apaixonado de Moisés impediu que acontecesse. Deus, então, instituiu uma nova
ordem.
O Ato 4 é invulgarmente longo.
Diz respeito a um povo com a divina presença no meio deles. Deus não está mais
simplesmente distante como o majestoso criador e interveniente na história. Ele
está perto, o Shekhinah, Deus imanente e transcendente: Deus como vizinho. Esta
história começa em Êxodo 35, e continua através do livro de Levítico, dominando
até os primeiros dez capítulos de Números. Seu símbolo mais tangível é o
Tabernáculo no centro do acampamento. O edifício do Tabernáculo ocupa o último
terço do livro do Êxodo. O Tabernáculo representa um lar para a divina presença
na Terra, e quem tentasse entrar no Tabernáculo tinha que estar puro e santo. As leis da
pureza e santidade tomam quase todo o livro de Levítico. Quando o livro de Números inicia,
espera-se que os israelitas comecem sua jornada à terra santa. Os primeiros dez
capítulos são, portanto, inesperados, e apontam para algo que somente se torna
claro mais adiante.
Uma vez que os israelitas estavam para tornar-se um povo livre na terra prometida aos ancestrais, eles necessitariam
ser capazes de se auto impor ordem. De outra forma eles iriam meramente repetir
os erros já cometidos três vezes: a violência antes do dilúvio, as divisões no
seio da família de Abraão, e a fundição do bezerro de ouro. Os primeiros dez
capítulos de Números dizem respeito à criação do discernimento da ordem no
interior do acampamento.
Essa foi a razão do censo e a
detalhada disposição das tribos, e a longa descrição dos levitas, a tribo que
mediava entre o povo e a presença divina. Essa também foi a razão das três leis
– a respeito da restituição (roubos), do adultério e do nazireato – dirigidas
contra as três forças que sempre colocam em perigo a ordem social: roubo,
infidelidade e álcool. Nesses capítulos
iniciais, é como se Deus estivesse dizendo aos israelitas: isto é o que ordem
deve ser. Cada pessoa tem seu lugar dentro da família, da tribo e da nação.
Cada um foi contado pelo censo e cada pessoa tem sua responsabilidade. Há uma
ordem na maneira como as tribos estão acampadas ao redor do Tabernáculo, e também há ordem para
a forma como procedem quando em jornada. Preservar e proteger esta ordem era imprescindível,
porque sem ela ninguém poderia entrar na terra, lutar suas batalhas, e criar
uma sociedade justa e livre.
Tragicamente, de acordo como o livro de Números demonstra, vemos que os israelitas não tinham internalizado essa
mensagem. Eles reclamavam sobre o alimento. Miriam e Aarão criticaram Moisés.
Então veio a catástrofe: o episódio dos espias. O povo desmoralizado, mostrou
que não estava ainda pronto para liberdade. Como anteriormente no caso do
bezerro de ouro, há caos no acampamento. Novamente Deus cogita destruir a nação
e recomeçar com Moisés (Num.14:12). Novamente, somente a poderosa petição de
Moisés salva o dia. Deus decide uma vez mais recomeçar, desta vez com a próxima
geração e um novo líder. O livro de Deuteronômio é o preludio de Moisés para o
ato 5, o qual toma lugar nos dias do sucessor, Josué.
A história israelita é muito
estranha. Outra vez os israelitas se separaram: nos dias do primeiro templo
quando o reino foi dividido em dois, no período do segundo templo quando
fracionado em grupos rivais e seitas, e na era moderna, no início do século
XIX, quando se fragmentou em religiosos e seculares na Europa oriental,
ortodoxos e outros na Europa ocidental. Tais divisões não foram curadas.
Assim, os israelitas continuam
repetindo a história contada cinco vezes na Torah. Deus cria a ordem. Humanos
criam o caos. Deus representa a unidade. O povo representa a desunidade. Coisas
ruins acontecem; Deus e Israel começam novamente.
A
história nunca terminará? Uma coisa é certa. Deus não desiste. Nem tampouco
cessa de falar a nós através da atemporalidade da Torah, lembrando-nos que o desafio central humano, em todas as eras é
que a liberdade pode coexistir com a ordem. Tal situação é possível quando
humanos livremente escolhem seguir as leis de Deus, dadas universalmente à
humanidade após o dilúvio e em concreto particularmente aos israelitas após o
Êxodo.
A alternativa, antiga e moderna,
é a regra do poder, na qual, o forte faz como quer e o
fraco sofre como pode. Mas, essa não é a liberdade como a Torah entende, nem é
também a receita para justiça e compaixão. A Torah é o chamado de Deus para
criar a liberdade que honra a ordem e uma ordem social que honra a liberdade
humana, para respeitar tanto o que é universal em nossa humanidade
compartilhada, como o que é especial na nossa especificidade histórica. O
desafio permanece.
Texto baseado no Livro “Números:
os anos no deserto” Jonathan Sacks