terça-feira, 24 de maio de 2016

Nossa Competência para Avaliar e Organizar Fatos


Um dos assuntos mais controvertidos no mundo cristão é o dos dons e ministérios, o qual tem emprego quase equivocado, especialmente entre o chamado mundo evangélico carismático. Não há muita clareza na interpretação dos textos do Novo Testamento que tratam do assunto, pois os teólogos, às vezes, buscam explicações com base em externalidades e não na profundidade dos textos.

A primeira questão que surge ao encarar-se o tema dos dons e ministérios é: por que estes são necessários? A maioria dos grupos religiosos assume uma postura imperiosamente mística quando tenta explicar a razão dos dons e torna quase incompreensível a operação de Deus, uma vez que não lidam com a base da questão. Proponho que vejamos essa dimensão do evangelho através da própria Bíblia.

Em Apocalipse 12:7-10 lemos: “ E houve batalha no céu; Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhavam o dragão e os seus anjos; Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele. E ouvi uma grande voz no céu, que dizia: Agora é chegada a salvação, e a força, e o reino do nosso Deus, e o poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é derrubado, o qual diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite”. Tal batalha deu origem ao que a Bíblia denomina de o Grande Conflito; uma controvérsia que abalou o universo criado. Duas idéias estão em debate; dois tipos de governos estão propostos; de um lado está o soberano do universo, Deus todo poderoso, cuja base do governo é a sua lei, com dois grandes princípios: amor a Deus e amor ao próximo. Estes princípios formam um sistema harmônico de ações, onde as criaturas ou inteligências habitando os vários planetas são instadas a cooperar através do desenvolvimento de virtudes individuais que as fortalece moralmente, sendo que os indivíduos passam a operar num alto nível de colaboração e harmonia. Quanto mais elevada é a harmonia, mais forte e consolidado é o Reino de Deus. Neste sentido, o imperativo do Reino é que os súditos sejam moralmente bem constituídos e possam assumir um forte grau de independência do poder central, de tal modo que, cada um pode ser auxílio ao outro, num sistema onde Deus é o grande provedor, mas as criaturas possuem autonomia para administrar umas às outras as necessidades comuns. O Reino de Deus é forte, na razão direta da autonomia dos seus súditos.

De outro lado, a proposta de Lucifer, denominado de a serpente, é diametralmente oposta. Ele propôs um sistema onde a divisão é o motor que impulsiona. Não há cooperação no sentido do crescimento do outro, mas cooperação negativa apenas para que um possa se desenvolver em detrimento de outros, um sistema de concorrência e de predação. A finalidade é fazer com que apenas um líder tenha força e os demais dependam profundamente da liderança. Nesse sistema de governo, o enfraquecimento dos súditos significa o fortalecimento do rei. Assim, dividir representa aumentar o nível de dependência. Tal sistema opera tendo o egoísmo como motor impulsionador. Assim, vemos que o universo outrora harmônico, com o surgimento do grande conflito, tornou-se dividido. Porém, é fundamental verificar que de todos os planetas criados, somente a Terra aderiu ao sistema onde a divisão é a base.

Desde que a serpente foi expulsa do céu, Deus vem trabalhando para restabelecer o sistema da harmonia. Assim, vejamos como têm acontecido as ações divinas sobre a Terra e qual tem sido o resultado.

Adão foi cooptado para o sistema da divisão e, uma vez implantado, tudo ficou afetado por ele. A primeira consequência foi a expulsão de Adão do paraíso. Adão torna-se separado de Deus e perde todas as características que havia recebido de Deus e que o tornara semelhante a Deus. O sistema da divisão operou o primeiro homicídio; quando Deus interpela Cain sobre a segurança do irmão, ele responde que não é o guardador do irmão. Se buscarmos a história, veremos que o sistema da divisão abalou as relações humanas; Jacó e Esaú não cooperam entre si; José e os irmãos se desentendem e, a Bíblia vai apresentando uma sucessão de desarmonias sociais que alçam nossos dias. O sistema de Deus foi substituído, a harmonia deu lugar à divisão.

Considerando que, todos os homens tornaram-se escravos de Satanás, ou seja, estão sob o domínio da divisão, do orgulho e da dissensão, então o céu passou a trabalhar no sentido de devolver a harmonia. No entanto, dado que o homem não possui a harmonia em si mesmo, são necessárias doações de virtudes celestes para que sejam restabelecidas a harmonia e a felicidade. Como podemos enxergar as ações de Deus na história humana para restaurar a harmonia?

Vamos tomar como ponto de partida a construção do tabernáculo no deserto. O livro Patriarcas e Profetas (Ellen White), à página 245 comenta: “Homens escolhidos foram especialmente dotados por Deus de habilidade e sabedoria para a construção do sagrado edifício. O próprio Deus deu a Moisés o plano daquela estrutura, com instruções específicas quanto ao seu tamanho e forma, materiais a serem empregados, e cada peça que fazia parte do aparelhamento que deveria a mesma conter. Os lugares santos, feitos a mão, deveriam ser ‘figura do verdadeiro’, ‘figuras das coisas que estão no Céu’ (Hebreus 9:24, 23) — uma representação em miniatura do templo celestial, onde Cristo, nosso grande Sumo Sacerdote, depois de oferecer Sua vida em sacrifício, ministraria em prol do pecador. Deus expôs perante Moisés, no monte, uma visão do santuário celestial, e mandou-lhe fazer todas as coisas de acordo com o modelo a ele mostrado. Todas estas instruções foram cuidadosamente registradas por Moisés, que as comunicou aos chefes do povo. [...] “E todas as mulheres sábias de coração fiavam com as suas mãos, e traziam o fiado, o azul e a púrpura, o carmesim, e o linho fino. E todas as mulheres, cujo coração as moveu em sabedoria, fiavam os pêlos das cabras. O comentário acima está baseado em Êxodo 31.

A informação acima é de grande importância para a compreensão do raciocínio que virá. Se o tabernáculo deveria ser uma representação da realidade celeste, e se os construtores eram homens submetidos não ao sistema de Deus, mas ao sistema da divisão, então é obvio que a compreensão da realidade superior do céu não poderia ser alcançada por eles. Neste sentido, Deus os dota de sabedoria especial para que pudessem perceber o conceito do sistema divino de cooperação e, consequentemente, tivessem como construir o tabernáculo. O que estamos verificando é que para haver comunicação entre Deus e os homens, é necessário que ferramentas ou virtudes morais sejam confiadas, de modo que haja elevação moral para que homens possam lidar com a realidade celeste.

A essa altura já podemos entender a razão dos dons doados à igreja. Esta é a exibição cósmica da vitória de Deus sobre o espírito de divisão que Satanás introduziu no universo no princípio do grande conflito. O mínimo que os membros do corpo de Cristo – a igreja – podem fazer é parecer unidos e leais aos propósitos eternos de Deus.

Agora, analisemos dois textos importantes para entender os dons e ministérios. O primeiro deles está em I Coríntios 12:1-12: “ Acerca dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais ignorantes. Vós bem sabeis que éreis gentios, levados aos ídolos mudos, conforme éreis guiados. Portanto, vos quero fazer compreender que ninguém que fala pelo Espírito de Deus diz: Jesus é anátema, e ninguém pode dizer que Jesus é o SENHOR, senão pelo Espírito Santo. Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil. Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência; e a outro, pelo mesmo Espírito, a fé; e a outro, pelo mesmo Espírito, os dons de curar; e a outro a operação de maravilhas; e a outro a profecia; e a outro o dom de discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a interpretação das línguas. Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como quer. Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, são um só corpo, assim é Cristo também”.  

No verso três vemos que homens submetidos ao sistema da divisão, mas que podem ser guiados por Deus podem reconhecer o funcionamento do sistema da harmonia. A estes são enviados sabedoria e conhecimento. Sabedoria aqui é uma palavra que vem do Hebraico, jokmah. Aparece 141 vezes no Antigo Testamento e quase sempre se traduz como "sabedoria". Jokmah abarca uma quantidade de ideias: (1) perícia técnica (Exo. 28: 3; 35: 26; 1 Reis. 7: 14); (2) talento, sagacidade (1 Reis. 2: 6; 3: 28; Job 39: 17; Isa. 10: 13; 29: 14); (3) sabedoria terrenal prática (1 Reis. 4: 30; Isa. 47: 10); (4) sabedoria piedosa (Deut. 4: 6; Sal. 37: 30; 90: 12; Prov. 10: 31; Isa. 33: 6; Jer. 8: 9); (5) sabedoria como um atributo de Deus (Sal. 104: 24; Prov. 3: 19; Jer. 10: 12; 51: 15); (6) sabedoria divina personificada (Prov. 8: 1-36; 9: 1-6); (7) sabedoria humana ideal (Sal. 111: 10; Prov. 1: 2), etc. A "sabedoria" se distingue do "conhecimento" (Hebráico dá'ath), em que "sabedoria" está ligada ao caráter e a conduta, enquanto que "conhecimento" se refere principalmente à cultura intelectual. O conhecimento pede ser só uma acumulação de fatos desconexos, sem a capacidade de aplica-los à vida prática. Por outro lado, a sabedoria é a faculdade que permite aplicar os fatos na vida prática. Neste entendimento ou compreensão está implícita a capacidade de avaliar e organizar fatos, condição essencial para alcançar a sabedoria. A sabedoria, tão encalcada no livro dos Provérbios, é perspicácia prática tal como a que se revela nos ideais morais e no caráter religioso. Os diversos aspectos da sabedoria correspondem com as características do que está à altura das normas de Deus. A sabedoria que descreve Salomão é abarcante no sentido de que cobre todas as fases da vida prática. Não separa a piedade dos deveres comuns da vida. O que tem a verdadeira sabedoria, reflete os requerimentos de Deus em cada pensamento e ato.

O segundo texto está em Efésios 4:8-16: “Por isso diz: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, E deu dons aos homens. Ora, isto ele subiu que é, senão que também antes tinha descido às partes mais baixas da terra? Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as coisas. E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo, para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente. Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor”.

Vejamos primeiramente o que está no verso oito, “subindo ao alto, levou cativo o cativeiro”. O texto refere-se a Jesus que subiu ao alto; ora quem sobe já está no alto, então porque subindo ao alto? Porque as coisas altas estão no reino da harmonia onde a lei de Deus é a base das ações, as coisas baixas são aquelas do reino da divisão, daí ter Ele subido ao alto. Mas, diz-nos que levou cativo o cativeiro, ou seja, aquilo que nos oprimia, o sistema ao qual fomos escravizados e encantados, este Ele levou cativo. O texto nos informa que a ascensão de Cristo determinou que qualquer homem que não mais queira estar no domínio da divisão poderá transferir-se para o sistema da harmonia. A continuação verso oito informa que, por causa de ter colocado em cativeiro o sistema do inimigo, pode agora distribuir dons ou virtudes que são necessários aos que estão no reino da harmonia.

Ora, as virtudes são para edificação do corpo de Cristo. Homens que viveram no sistema da divisão devem agora aprender a operar o sistema da harmonia; até que todos cheguemos à unidade da fé, não mais em disputa, mas em cooperação, até que todos alcancem o conhecimento do Filho de Deus, dominem aquilo que somente Jesus sabia, cheguem a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo, para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente. Perguntamos agora qual é o engano frauduloso dos homens?

Há no mundo cristão aqueles que advogam que a lei dos dez mandamentos foi abolida com a morte de Jesus. Mas esta afirmação não encontra respaldo no texto de Efésios 4, considerando que Jesus levou cativo o sistema da divisão. Os cristãos explicam que agora vivemos no império da graça, onde tudo é permitido porque Jesus cumpriu a lei por nós. Tal raciocínio é estrábico em relação à realidade do texto. Se Jesus subiu ao alto e levou cativo o cativeiro, se todo homem agora é livre para optar entre dois sistemas, se o sistema de Deus é o da harmonia, ou seja, um sistema que pressupõe amor a Deus e amor ao próximo, então a lei não foi abolida. Consequentemente, todo sistema religioso cristão que não advoga a harmonia através da lei é falso ou fraudulento, pois tenta estar no reino de Deus, mas opera pelo sistema da divisão. De fato, especialmente entre os evangélicos, há proliferação de igrejas onde a principal meta é obter vantagens neste mundo. Tal miscelânea é um sincretismo que a Bíblia chama de Babilônia. Assim, os dons são dados aos homens para que estes cresçam e alcancem a estatura de Cristo o qual viveu sem pecado, pois guardou a lei, sendo que pecado é a transgressão da lei (Romanos 2:23).

Agora vejamos como estes dons operam para o crescimento da igreja. Nenhum dom que possamos ter – seja ensino, seja pregação, evangelismo, cura, aconselhamento, visitação, consolação, socorro – deve ser reservado para uso pessoal. Todos eles são designados para o bem coletivo e o crescimento da igreja, caso contrário, os detentores terão seus dons retirados (Mat.25:24-30). O dom da palavra é um talento que deve ser cultivado cuidadosamente. De todos os dons que recebemos de Deus, nenhum é capaz de se tornar maior bênção que este. Com a voz convencemos e persuadimos, com ela elevamos orações e louvores a Deus, e também falamos a outros do amor do Redentor. Que importância tem, pois, que seja bem educada a fim de tornar-se mais eficaz para o bem! A cultura e o correto uso da voz são grandemente negligenciados até por pessoas de inteligência e de atividade cristã. (Parábolas de Jesus, p178). Toda alma está circundada de uma atmosfera própria, que pode estar carregada do poder vivificante da fé, do ânimo, da esperança, e perfumada com a fragrância do amor. Ou pode estar pesada e fria com as nuvens do descontentamento e egoísmo, ou intoxicada com o contato mortal de um pecado acariciado. Pela atmosfera que nos envolve, toda pessoa com quem nos comunicamos é consciente ou inconscientemente afetada. Esta é uma responsabilidade de que não nos podemos livrar. Nossas palavras, nossos atos, nosso traje, nosso procedimento, até a expressão fisionômica tem sua influência. (Parábolas de Jesus, p.180). O dinheiro é de grande valor, porque pode realizar grande bem. Nas mãos dos filhos de Deus é alimento para o faminto, água para o sedento, vestido para o nu. É proteção para o opresso, e meio para socorrer o enfermo. Mas o dinheiro não é de mais valor que a areia, a não ser que o empreguemos para prover as necessidades da vida, para bênção de outros, e para o desenvolvimento da obra de Cristo.  Ninguém suponha que possa viver vida de egoísmo, e então, tendo servido aos próprios interesses, entrar no gozo do Senhor. Não puderam participar da alegria de um amor desinteressado. Não se adaptariam às cortes celestes. Não poderiam apreciar a pura atmosfera de amor que impregna o Céu. As vozes dos anjos e a música de suas harpas não lhes agradariam. Para sua mente a ciência do Céu seria um enigma. (Parábolas de Jesus, p.197).

No evangelho de Marcos 4:30, lemos que Jesus não encontrou na sociedade humana nada com que pudesse comparar o reino de Deus, uma vez que os reinos da Terra se regem pela supremacia do poder físico. “Mas no reino de Cristo não existe arma carnal nem instrumento de coerção. Esse reino deve erguer e enobrecer a humanidade. A igreja de Deus é o recinto de vida santa, plena de variados dons e dotada com o Espírito Santo. Os membros devem encontrar sua felicidade na felicidade daqueles a quem ajudam e abençoam” (Atos dos Apóstolos, p7).

 










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