Um dos assuntos mais
controvertidos no mundo cristão é o dos dons e ministérios, o qual tem emprego
quase equivocado, especialmente entre o chamado mundo evangélico carismático.
Não há muita clareza na interpretação dos textos do Novo Testamento que tratam
do assunto, pois os teólogos, às vezes, buscam explicações com base em
externalidades e não na profundidade dos textos.
A primeira questão que surge ao
encarar-se o tema dos dons e ministérios é: por que estes são necessários? A
maioria dos grupos religiosos assume uma postura imperiosamente mística quando
tenta explicar a razão dos dons e torna quase incompreensível a operação de
Deus, uma vez que não lidam com a base da questão. Proponho que vejamos essa
dimensão do evangelho através da própria Bíblia.
Em Apocalipse 12:7-10 lemos: “ E
houve batalha no céu; Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e
batalhavam o dragão e os seus anjos; Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar
se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente,
chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na
terra, e os seus anjos foram lançados com ele. E ouvi uma grande voz no céu,
que dizia: Agora é chegada a salvação, e a força, e o reino do nosso Deus, e o
poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é derrubado, o qual
diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite”. Tal batalha deu origem ao
que a Bíblia denomina de o Grande Conflito; uma controvérsia que abalou o
universo criado. Duas idéias estão em debate; dois tipos de governos estão
propostos; de um lado está o soberano do universo, Deus todo poderoso, cuja
base do governo é a sua lei, com dois grandes princípios: amor a Deus e amor ao
próximo. Estes princípios formam um sistema harmônico de ações, onde as
criaturas ou inteligências habitando os vários planetas são instadas a cooperar
através do desenvolvimento de virtudes individuais que as fortalece moralmente,
sendo que os indivíduos passam a operar num alto nível de colaboração e
harmonia. Quanto mais elevada é a harmonia, mais forte e consolidado é o Reino
de Deus. Neste sentido, o imperativo do Reino é que os súditos sejam moralmente
bem constituídos e possam assumir um forte grau de independência do poder
central, de tal modo que, cada um pode ser auxílio ao outro, num sistema onde
Deus é o grande provedor, mas as criaturas possuem autonomia para administrar
umas às outras as necessidades comuns. O Reino de Deus é forte, na razão direta
da autonomia dos seus súditos.
De outro lado, a proposta de
Lucifer, denominado de a serpente, é diametralmente oposta. Ele propôs um
sistema onde a divisão é o motor que impulsiona. Não há cooperação no sentido
do crescimento do outro, mas cooperação negativa apenas para que um possa se
desenvolver em detrimento de outros, um sistema de concorrência e de predação.
A finalidade é fazer com que apenas um líder tenha força e os demais dependam
profundamente da liderança. Nesse sistema de governo, o enfraquecimento dos
súditos significa o fortalecimento do rei. Assim, dividir representa aumentar o
nível de dependência. Tal sistema opera tendo o egoísmo como motor impulsionador.
Assim, vemos que o universo outrora harmônico, com o surgimento do grande
conflito, tornou-se dividido. Porém, é fundamental verificar que de todos os
planetas criados, somente a Terra aderiu ao sistema onde a divisão é a base.
Desde que a serpente foi expulsa
do céu, Deus vem trabalhando para restabelecer o sistema da harmonia. Assim,
vejamos como têm acontecido as ações divinas sobre a Terra e qual tem sido o
resultado.
Adão foi cooptado para o sistema
da divisão e, uma vez implantado, tudo ficou afetado por ele. A primeira
consequência foi a expulsão de Adão do paraíso. Adão torna-se separado de Deus
e perde todas as características que havia recebido de Deus e que o tornara
semelhante a Deus. O sistema da divisão operou o primeiro homicídio; quando
Deus interpela Cain sobre a segurança do irmão, ele responde que não é o
guardador do irmão. Se buscarmos a história, veremos que o sistema da divisão
abalou as relações humanas; Jacó e Esaú não cooperam entre si; José e os irmãos
se desentendem e, a Bíblia vai apresentando uma sucessão de desarmonias sociais
que alçam nossos dias. O sistema de Deus foi substituído, a harmonia deu lugar
à divisão.
Considerando que, todos os homens
tornaram-se escravos de Satanás, ou seja, estão sob o domínio da divisão, do
orgulho e da dissensão, então o céu passou a trabalhar no sentido de devolver a
harmonia. No entanto, dado que o homem não possui a harmonia em si mesmo, são
necessárias doações de virtudes celestes para que sejam restabelecidas a
harmonia e a felicidade. Como podemos enxergar as ações de Deus na história
humana para restaurar a harmonia?
Vamos tomar como ponto de partida
a construção do tabernáculo no deserto. O livro Patriarcas e Profetas (Ellen
White), à página 245 comenta: “Homens escolhidos foram especialmente dotados
por Deus de habilidade e sabedoria para a construção do sagrado edifício. O
próprio Deus deu a Moisés o plano daquela estrutura, com instruções específicas
quanto ao seu tamanho e forma, materiais a serem empregados, e cada peça que
fazia parte do aparelhamento que deveria a mesma conter. Os lugares santos,
feitos a mão, deveriam ser ‘figura do verdadeiro’, ‘figuras das coisas que
estão no Céu’ (Hebreus 9:24, 23) — uma representação em miniatura do templo
celestial, onde Cristo, nosso grande Sumo Sacerdote, depois de oferecer Sua
vida em sacrifício, ministraria em prol do pecador. Deus expôs perante Moisés,
no monte, uma visão do santuário celestial, e mandou-lhe fazer todas as coisas
de acordo com o modelo a ele mostrado. Todas estas instruções foram
cuidadosamente registradas por Moisés, que as comunicou aos chefes do povo.
[...] “E todas as mulheres sábias de coração fiavam com as suas mãos, e traziam
o fiado, o azul e a púrpura, o carmesim, e o linho fino. E todas as mulheres,
cujo coração as moveu em sabedoria, fiavam os pêlos das cabras. O comentário
acima está baseado em Êxodo 31.
A informação acima é de grande importância
para a compreensão do raciocínio que virá. Se o tabernáculo deveria ser uma representação
da realidade celeste, e se os construtores eram homens submetidos não ao
sistema de Deus, mas ao sistema da divisão, então é obvio que a compreensão da
realidade superior do céu não poderia ser alcançada por eles. Neste sentido,
Deus os dota de sabedoria especial para que pudessem perceber o conceito do
sistema divino de cooperação e, consequentemente, tivessem como construir o
tabernáculo. O que estamos verificando é que para haver comunicação entre Deus
e os homens, é necessário que ferramentas ou virtudes morais sejam confiadas,
de modo que haja elevação moral para que homens possam lidar com a realidade
celeste.
A essa altura já podemos entender
a razão dos dons doados à igreja. Esta é a exibição cósmica da vitória de Deus
sobre o espírito de divisão que Satanás introduziu no universo no princípio do
grande conflito. O mínimo que os membros do corpo de Cristo – a igreja – podem
fazer é parecer unidos e leais aos propósitos eternos de Deus.
Agora, analisemos dois textos
importantes para entender os dons e ministérios. O primeiro deles está em I Coríntios
12:1-12: “ Acerca dos dons espirituais, não quero, irmãos, que sejais
ignorantes. Vós bem sabeis que éreis gentios, levados aos ídolos mudos,
conforme éreis guiados. Portanto, vos quero fazer compreender que ninguém que
fala pelo Espírito de Deus diz: Jesus é anátema, e ninguém pode dizer que Jesus
é o SENHOR, senão pelo Espírito Santo. Ora, há diversidade de dons, mas o
Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E
há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. Mas a
manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil. Porque a um
pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a
palavra da ciência; e a outro, pelo mesmo Espírito, a fé; e a outro, pelo mesmo
Espírito, os dons de curar; e a outro a operação de maravilhas; e a outro a
profecia; e a outro o dom de discernir os espíritos; e a outro a variedade de
línguas; e a outro a interpretação das línguas. Mas um só e o mesmo Espírito
opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como quer. Porque,
assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros, sendo
muitos, são um só corpo, assim é Cristo também”.
No verso três vemos que homens submetidos
ao sistema da divisão, mas que podem ser guiados por Deus podem reconhecer o
funcionamento do sistema da harmonia. A estes são enviados sabedoria e
conhecimento. Sabedoria aqui é uma palavra que vem do Hebraico, jokmah. Aparece
141 vezes no Antigo Testamento e quase sempre se traduz como
"sabedoria". Jokmah abarca uma quantidade de ideias: (1) perícia
técnica (Exo. 28: 3; 35: 26; 1 Reis. 7: 14); (2) talento, sagacidade (1 Reis.
2: 6; 3: 28; Job 39: 17; Isa. 10: 13; 29: 14); (3) sabedoria terrenal prática
(1 Reis. 4: 30; Isa. 47: 10); (4) sabedoria piedosa (Deut. 4: 6; Sal. 37: 30;
90: 12; Prov. 10: 31; Isa. 33: 6; Jer. 8: 9); (5) sabedoria como um atributo de
Deus (Sal. 104: 24; Prov. 3: 19; Jer. 10: 12; 51: 15); (6) sabedoria divina
personificada (Prov. 8: 1-36; 9: 1-6); (7) sabedoria humana ideal (Sal. 111:
10; Prov. 1: 2), etc. A "sabedoria" se distingue do
"conhecimento" (Hebráico dá'ath), em que "sabedoria" está
ligada ao caráter e a conduta, enquanto que "conhecimento" se refere
principalmente à cultura intelectual. O conhecimento pede ser só uma acumulação
de fatos desconexos, sem a capacidade de aplica-los à vida prática. Por outro
lado, a sabedoria é a faculdade que permite aplicar os fatos na vida prática. Neste
entendimento ou compreensão está implícita a capacidade de avaliar e organizar
fatos, condição essencial para alcançar a sabedoria. A sabedoria, tão encalcada
no livro dos Provérbios, é perspicácia prática tal como a que se revela nos
ideais morais e no caráter religioso. Os diversos aspectos da sabedoria
correspondem com as características do que está à altura das normas de Deus. A
sabedoria que descreve Salomão é abarcante no sentido de que cobre todas as
fases da vida prática. Não separa a piedade dos deveres comuns da vida. O que tem
a verdadeira sabedoria, reflete os requerimentos de Deus em cada pensamento e
ato.
O segundo texto está em Efésios
4:8-16: “Por isso diz: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, E deu dons
aos homens. Ora, isto ele subiu que é, senão que também antes tinha descido às
partes mais baixas da terra? Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima
de todos os céus, para cumprir todas as coisas. E ele mesmo deu uns para
apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para
pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do
ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à
unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida
da estatura completa de Cristo, para que não sejamos mais meninos inconstantes,
levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com
astúcia enganam fraudulosamente. Antes, seguindo a verdade em amor, cresçamos
em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, bem ajustado, e ligado
pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o
aumento do corpo, para sua edificação em amor”.
Vejamos primeiramente o que está
no verso oito, “subindo ao alto, levou cativo o cativeiro”. O texto refere-se a
Jesus que subiu ao alto; ora quem sobe já está no alto, então porque subindo ao
alto? Porque as coisas altas estão no reino da harmonia onde a lei de Deus é a
base das ações, as coisas baixas são aquelas do reino da divisão, daí ter Ele
subido ao alto. Mas, diz-nos que levou cativo o cativeiro, ou seja, aquilo que
nos oprimia, o sistema ao qual fomos escravizados e encantados, este Ele levou
cativo. O texto nos informa que a ascensão de Cristo determinou que qualquer
homem que não mais queira estar no domínio da divisão poderá transferir-se para
o sistema da harmonia. A continuação verso oito informa que, por causa de ter
colocado em cativeiro o sistema do inimigo, pode agora distribuir dons ou
virtudes que são necessários aos que estão no reino da harmonia.
Ora, as virtudes são para edificação
do corpo de Cristo. Homens que viveram no sistema da divisão devem agora
aprender a operar o sistema da harmonia; até que todos cheguemos à unidade da
fé, não mais em disputa, mas em cooperação, até que todos alcancem o
conhecimento do Filho de Deus, dominem aquilo que somente Jesus sabia, cheguem a
homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo, para que não sejamos
mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo
engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente. Perguntamos agora
qual é o engano frauduloso dos homens?
Há no mundo cristão aqueles que
advogam que a lei dos dez mandamentos foi abolida com a morte de Jesus. Mas esta
afirmação não encontra respaldo no texto de Efésios 4, considerando que Jesus
levou cativo o sistema da divisão. Os cristãos explicam que agora vivemos no
império da graça, onde tudo é permitido porque Jesus cumpriu a lei por nós. Tal
raciocínio é estrábico em relação à realidade do texto. Se Jesus subiu ao alto
e levou cativo o cativeiro, se todo homem agora é livre para optar entre dois
sistemas, se o sistema de Deus é o da harmonia, ou seja, um sistema que pressupõe
amor a Deus e amor ao próximo, então a lei não foi abolida. Consequentemente, todo
sistema religioso cristão que não advoga a harmonia através da lei é falso ou
fraudulento, pois tenta estar no reino de Deus, mas opera pelo sistema da
divisão. De fato, especialmente entre os evangélicos, há proliferação de
igrejas onde a principal meta é obter vantagens neste mundo. Tal miscelânea é
um sincretismo que a Bíblia chama de Babilônia. Assim, os dons são dados aos
homens para que estes cresçam e alcancem a estatura de Cristo o qual viveu sem
pecado, pois guardou a lei, sendo que pecado é a transgressão da lei (Romanos
2:23).
Agora vejamos como estes dons operam
para o crescimento da igreja. Nenhum dom que possamos ter – seja ensino, seja
pregação, evangelismo, cura, aconselhamento, visitação, consolação, socorro –
deve ser reservado para uso pessoal. Todos eles são designados para o bem
coletivo e o crescimento da igreja, caso contrário, os detentores terão seus
dons retirados (Mat.25:24-30). O dom da palavra é um talento que deve ser
cultivado cuidadosamente. De todos os dons que recebemos de Deus, nenhum é
capaz de se tornar maior bênção que este. Com a voz convencemos e persuadimos,
com ela elevamos orações e louvores a Deus, e também falamos a outros do amor
do Redentor. Que importância tem, pois, que seja bem educada a fim de tornar-se
mais eficaz para o bem! A cultura e o correto uso da voz são grandemente
negligenciados até por pessoas de inteligência e de atividade cristã. (Parábolas
de Jesus, p178). Toda alma está circundada de uma atmosfera própria, que pode
estar carregada do poder vivificante da fé, do ânimo, da esperança, e perfumada
com a fragrância do amor. Ou pode estar pesada e fria com as nuvens do
descontentamento e egoísmo, ou intoxicada com o contato mortal de um pecado
acariciado. Pela atmosfera que nos envolve, toda pessoa com quem nos
comunicamos é consciente ou inconscientemente afetada. Esta é uma
responsabilidade de que não nos podemos livrar. Nossas palavras, nossos atos,
nosso traje, nosso procedimento, até a expressão fisionômica tem sua
influência. (Parábolas de Jesus, p.180). O dinheiro é de grande valor, porque
pode realizar grande bem. Nas mãos dos filhos de Deus é alimento para o
faminto, água para o sedento, vestido para o nu. É proteção para o opresso, e
meio para socorrer o enfermo. Mas o dinheiro não é de mais valor que a areia, a
não ser que o empreguemos para prover as necessidades da vida, para bênção de
outros, e para o desenvolvimento da obra de Cristo. Ninguém suponha que possa viver vida de
egoísmo, e então, tendo servido aos próprios interesses, entrar no gozo do
Senhor. Não puderam participar da alegria de um amor desinteressado. Não se
adaptariam às cortes celestes. Não poderiam apreciar a pura atmosfera de amor
que impregna o Céu. As vozes dos anjos e a música de suas harpas não lhes
agradariam. Para sua mente a ciência do Céu seria um enigma. (Parábolas de
Jesus, p.197).
No evangelho de Marcos 4:30,
lemos que Jesus não encontrou na sociedade humana nada com que pudesse comparar
o reino de Deus, uma vez que os reinos da Terra se regem pela supremacia do
poder físico. “Mas no reino de Cristo não existe arma carnal nem instrumento de
coerção. Esse reino deve erguer e enobrecer a humanidade. A igreja de Deus é o
recinto de vida santa, plena de variados dons e dotada com o Espírito Santo. Os
membros devem encontrar sua felicidade na felicidade daqueles a quem ajudam e
abençoam” (Atos dos Apóstolos, p7).
Nenhum comentário:
Postar um comentário