Bezerro de ouro
O marcante caso do bezerro de
ouro teve efeito vicariante na história de Israel. Moisés subiu ao monte Sinai
e permaneceu lá por trinta dias e noites. Deus interrompe a reunião e comanda
para Moisés descer porque o povo estava em franca decadência. Antes de descer,
Moisés roga a Deus que perdoe o povo, mesmo antes de ter completa noção do
ocorrido. A medida em que desce começa a ouvir os alaridos do povo dançando e
cantando em torno do bezerro de ouro. Moisés é tomado por espanto e no calor do
momento atira as tábuas de pedras com os escritos divinos da Lei, quebrando-as.
Toma o bezerro de ouro, queima-o e o reduz a pó; mistura o pó com agua e faz
com que o povo tome a solução, parte do ritual de purificação; executa os
culpados; três mil morrem num só dia. Moisés volta no dia seguinte ao monte
Sinai e fala com Deus suplicando que perdoe o povo e por quarenta dias continua
pleiteando com Deus para que não remova a Sua presença do acampamento. Numa
cena memorável Deus passa diante de Moisés a quem Ele diz “veja as minhas
costas, porque ninguém pode ver minha face”. Moisés profere as palavras que se
tornaram conhecidas como os treze atributos da misericórdia: “Passando, pois, o
SENHOR perante ele, clamou: O SENHOR, o SENHOR Deus, misericordioso e piedoso,
tardio em irar-se e grande em beneficência e verdade; que guarda a beneficência
em milhares; que perdoa a iniquidade, e a transgressão e o pecado; que ao
culpado não tem por inocente; que visita a iniquidade dos pais sobre os filhos
e sobre os filhos dos filhos até à terceira e quarta geração. E Moisés
apressou-se, e inclinou a cabeça à terra, adorou” (Êxodo 34:6-8). As palavras
de Moisés são a base para aqueles que buscam a Deus de forma penitencial.
Moisés usou novamente estas palavras quando encarou o pecado dos espias
(Números 14:17-20). Deus então instrui Moisés a preparar um segundo conjunto de
tábuas, um símbolo obvio de que Deus havia indultado o povo e ainda conservava
sua aliança com eles.
Yon Kippur
Uma vez por ano o Sumo Sacerdote
entrava no lugar santíssimo do tabernáculo buscando, primeiramente, expiação
para ele e sua família e depois para o povo. O Yon Kippur, dia da expiação, era
um acontecimento insólito e muito organizado, o qual tinha no núcleo um ritual
envolvendo dois bodes, com aspectos iguais, sobre os quais era lançada sorte.
Um deles era para o Senhor, sendo oferecido como oferta pelo pecado. O outro
era para Azazel. Sobre este, o Sumo Sacerdote confessava todos os pecados e
transgressões do povo, colocando suas mãos sobre o animal. Assim, o segundo
bode levava todas as iniquidades e era conduzido para o deserto onde morreria
jogado em um precipício.
Todo ritual era conduzido sem
falhas ou improvisações, sem alterações ou inovações. Era um ritual intenso em
seu visual e simbolismo.
As duas narrativas acima não são análogas.
A primeira é cheia de sentimento e paixão, uma vez que Deus ficou aborrecido e
Moisés implorou poderosamente. A segunda é um ritual para o qual Aarão era o protagonista
ou o Sumo Sacerdote da época, mas, os atos, ofertas, confissões, aspersões de
sangue, sorte lançada para os dois bodes com um deles sendo levado ao deserto,
tudo ocorrendo ano após ano até a destruição do templo. Não há emoção, nenhuma variante,
nenhum diálogo entre o sacerdote e Deus. Nada era imprevisível. As duas
narrativas pertencem a orbes diferentes. No entanto, são duas versões do mesmo acontecimento.
Ambas tratam do remorso humano e do perdão divino, ou seja, ambas tratam da
restauração de relacionamentos quebrados. Curiosamente, ambas aconteceram no
mesmo dia. Moisés desceu do monte Sinai no décimo dia de Tishrei. Também no
décimo dia de Tishrei acontecia o Yon Kippur, no qual, ano após ano o Sumo
Sacerdote conduzia o rito da expiação. O que vemos nestas duas narrativas é um
processo, a lógica que é vital se queremos compreender a natureza complexa do
cristianismo.
Santa Ceia
Da mesma forma como os israelitas
mudaram do Êxodo para Levíticos, do primeiro ano da jornada para o segundo, a
tarefa de assegurar a expiação muda de Moises para Aarão, ou seja, do profeta
para o sacerdote, do drama imprevisto para a regra que governa o ritual. Esta é
a diferença entre o único e o universal, o evento que marca uma época e o
ritual que se repete infinitamente fornecendo caráter e continuidade.
Para o cristianismo, a tarefa de
assegurar a expiação passa dos Sacerdotes para Cristo; o Yon Kippur foi
substituído pelo sacrifício vicário de Jesus. Assim como o bode para o Senhor, “Verdadeiramente
ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e
nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi ferido
por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniqüidades; o
castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos
sarados”(Isaías 53:4-5). O sacrifício de Jesus foi um evento único. Na santa
ceia, Jesus juntou as duas narrativas dando ao cristianismo uma nova
perspectiva de reconciliação de um relacionamento quebrado entre Deus e a
humanidade, com protocolo imutável; “Porque todas as vezes que comerdes este
pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha”(Coríntios
11:26).
No ritual da ceia, especificamente
no lava pés, confessamos ao nosso próximo nossas faltas cometidas contra ele,
conforme o protocolo celeste: “Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e
aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante
do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois,
vem e apresenta a tua oferta” (Mateus 5:23-24). Assim, são reatados
relacionamentos quebrados entre homens. Somente após, poderemos participar do
pão e do vinho. Ambos rituais são a reconciliação entre Deus e os homens, ou
seja, a expiação realizada, uma vez que expiar significa colocar em ordem,
sendo que o que é colocado em ordem é nosso relacionamento com Deus. O pão
representa o corpo de Cristo que não cometeu pecado. Comendo o pão colocamos em
nossa grade estrutural, simbolicamente, os átomos do corpo de Cristo, e assim,
teremos como vencer as tendências carnais e governar nossos desejos de concupiscência.
Quando tomamos o vinho, simbolicamente colocamos em nós o sangue de Cristo, o
qual leva energia vital ao corpo. Esse sangue simboliza a nossa volição
controlada pelo sangue de Cristo; não temos sujeição ao pecado porque temos o
corpo e o sangue de Cristo.
(Texto baseado no capítulo “From Never Again to Ever Again”
do livro Leviticus do Rabino Jonathan Sacks.)