1 INTRODUÇÃO
Desde a
narrativa da criação até o drama da redenção, a Bíblia apresenta a humanidade
como portadora de uma identidade originalmente harmoniosa, porém profundamente
afetada pelo pecado. A queda comprometeu não apenas o relacionamento do ser
humano com Deus, mas desorganizou internamente sua estrutura moral e
espiritual. Este artigo visa explorar, à luz da teologia bíblica e da
contribuição de Ellen G. White, os caminhos propostos para restaurar essa
estrutura. A proposta de "genética espiritual" é aqui compreendida
como símbolo da constituição interior e moral do ser humano, que pode ser
reconfigurada pela ação do Espírito Santo e pela Palavra de Deus.
2 A QUEDA E A DESINTEGRAÇÃO DA ALMA HUMANA
O relato de
Gênesis 3 marca a ruptura da harmonia interior do ser humano. A alma,
compreendida como sede da razão, vontade, emoções e consciência, sofreu uma
grave desordem espiritual. O pecado não apenas separou o homem de Deus, mas
desorganizou sua própria estrutura interna:
- A razão foi obscurecida (Efésios 4.18); “... entenebrecidos no entendimento,
separados da vida de Deus pela ignorância que há neles, pela dureza do seu
coração.” A mente foi desconectada de sua fonte original de luz — Deus. A
ignorância espiritual não é apenas falta de informação, mas incapacidade
moral de discernir o bem supremo.
- A vontade tornou-se escrava do egoísmo; (Romanos 7.18–19) “...
o querer o bem está em mim, mas não consigo realizá-lo.” A vontade passou a ser
escrava do ego e dos impulsos carnais. Mesmo quando o bem é conhecido
racionalmente, o ser humano decaído não consegue escolhê-lo com constância,
pois o pecado deturpou a liberdade interior.
- As emoções se desordenaram; (1 João 2.16) “... os desejos da carne, os desejos dos
olhos e a soberba da vida, não vêm do Pai, mas do mundo.” A alma passou a valorizar
o que oferece prazer imediato e sensorial, muitas vezes em
detrimento de valores eternos. Há um apelo desordenado ao que é visível,
bonito, poderoso ou prazeroso.
- A consciência foi amortecida; (Tito 1.15) “Todas as coisas são puras para os puros; mas
para os impuros e descrentes nada é puro, porque tanto a mente como a
consciência deles estão corrompidas.” A consciência moral — nossa
capacidade de perceber o certo e o errado — foi corrompida. A queda afetou
até mesmo a sensibilidade ética e espiritual do homem.
WHITE
(2004, p. 17) afirma: “Quando o homem pecou, a imagem de Deus em sua alma foi
desfigurada. O senso moral se obscureceu. Sua natureza tornou-se depravada”. A
alma passou a buscar sentido no material, nas posses e no controle sensorial da
realidade.
3 POR QUE OS BENS MATERIAIS SÃO PREFERIDOS AOS
ESPIRITUAIS?
A alma
corrompida perdeu a sensibilidade para perceber o valor do que é invisível.
Paulo afirma que “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus,
porque lhe são loucura” (1 Coríntios 2.14). Os bens materiais se tornaram um
substituto concreto para aquilo que exige fé e percepção espiritual. A
preferência pelos bens materiais é um efeito direto da alma corrompida pelo pecado.
O ser humano passou a confiar naquilo que pode controlar, acumular e exibir
— exatamente o oposto da fé.
a)
Fé substituída pela vista
“Porque andamos por fé, e não por vista” (2 Coríntios 5:7). Mas o pecador, alienado de Deus, vive por vista.
Ele deseja tocar, possuir, controlar. O invisível (como o Reino de Deus) se
torna irrelevante ou “louco” (1 Coríntios 2:14).
b)
O valor das coisas foi
invertido
“Mas o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque
lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente”
(1 Coríntios 2:14). Quem está espiritualmente morto não valoriza o que tem
valor eterno. Os tesouros do céu são vistos como perda, e os do mundo como
ganho — exatamente o contrário do que Cristo ensinou (cf. Mateus 6:19-21).
c) A alma busca segurança e identidade nos bens
“Pois onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”
(Mateus 6:21). O coração humano busca um “centro de gravidade”. Sem Deus, os
bens materiais se tornam o substituto de significado, valor e segurança.
Jesus advertiu: “Onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Mateus 6.21). Ellen White corrobora: “Satanás nos leva a considerar este mundo como nosso lar. Ele faz com que nossos interesses estejam voltados para aquilo que podemos possuir e gozar aqui” (WHITE, 1990, p. 16).
Onde os bens espirituais são avaliados?
Os bens espirituais só podem ser
reconhecidos como valiosos por uma alma regenerada pelo Espírito Santo.
a)
O novo nascimento abre os
olhos espirituais
“Aquele que não nascer de novo não pode ver o
Reino de Deus” (João 3:3). Sem regeneração, o Reino — com
todos os seus valores — é invisível. O novo nascimento restaura a sensibilidade
da alma às coisas de Deus.
b)
O Espírito Santo nos
capacita a discernir
“Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e
ele de ninguém é discernido”
(1 Coríntios 2:15). Somente pela ação do Espírito, o homem volta a valorizar
os bens invisíveis e eternos, como a graça, a verdade, a justiça, a
presença de Deus.
c)
A alma regenerada busca as
coisas do alto
“Pensai nas coisas lá do alto, e não nas que
são aqui da terra”
(Colossenses 3:2). A valorização do espiritual é o resultado direto da
renovação da mente (Romanos 12:2). Há uma inversão na escala de valores — o
que era lixo passa a ser tesouro, e vice-versa (cf. Filipenses 3:7-8).
4 O CAMINHO DA RESTAURAÇÃO: ETAPAS PARA A
RECONFIGURAÇÃO DA ALMA
A
restauração da alma exige a reestruturação das faculdades interiores de acordo
com o caráter de Deus. Esse caminho pode ser delineado em quatro etapas:
a)
Arrependimento genuíno – Reconhecimento da
condição pecaminosa. “O coração é enganoso mais do que todas as coisas,
e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (Jeremias
17.9); “Convertei-vos a Mim de todo o vosso coração, e isso com jejum,
com choro e com pranto” (Joel 2.12); “Arrependei-vos, pois, e
convertei-vos para que sejam cancelados os vossos pecados” (Atos 3.19). O arrependimento é o primeiro passo da restauração,
pois nos reconecta com a verdade sobre nossa condição. A alma só começa a ser
curada quando admite estar doente (Lucas 5:31-32).
b)
Regeneração e justificação –
Aceitação da obra redentora de Cristo. “Eis que vêm dias, diz o Senhor,
em que farei um novo pacto [...] porei a minha lei no seu interior, e a
escreverei no seu coração” (Jeremias
31.31–33); “E dar-vos-ei um coração novo, e porei dentro
de vós um espírito novo”(Ezequiel 36:26); “Se alguém está em Cristo, nova criatura é; as
coisas antigas já passaram; eis que tudo se fez novo.”
(2 Coríntios 5:17). Por meio de Cristo, ocorre
a regeneração — um novo nascimento espiritual (cf. João 3:3-6). Deus,
por meio da cruz, não apenas perdoa, mas começa a reordenar a estrutura
interior do ser humano. “... sendo justificados gratuitamente por sua
graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus”(Romanos 3:24).
c)
Renovação da mente –
Alimentação contínua pela Palavra. “Achando-se as tuas palavras,
logo as comi, e as tuas palavras me foram gozo e alegria para o coração.”
(Jeremias 15:16); “E não vos conformeis
com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente...”(Romanos
12:2). A mente, corrompida pelo pecado, precisa de um processo contínuo de
reeducação espiritual. Isso se dá pelo estudo da Escritura, pela oração e
pela comunhão com Deus.“Como meninos recém-nascidos, desejai ardentemente o
puro leite espiritual, para que por ele vos seja dado crescimento para salvação”(1
Pedro 2:2).
d)
Santificação pelo Espírito – Vida guiada pelo Espírito
Santo. “E porei dentro de vós o meu Espírito, e farei
que andeis nos meus estatutos”(Ezequiel 36:27); “Andai em Espírito, e não satisfareis os
desejos da carne” (Gálatas 5:16). A
presença do Espírito restaura o equilíbrio emocional, moral e
espiritual da alma. A vida no Espírito é a vida restaurada —
onde mente, vontade, emoções e consciência são progressivamente realinhadas com
Deus.
WHITE
(2006, p. 125) resume: “A restauração completa do homem exige a mesma obra que
foi feita na criação: a ação da Palavra e do Espírito de Deus.”
A restauração do equilíbrio humano só é
possível quando a mesma
força que criou o homem passa a recriá-lo. A Palavra oferece o
conteúdo, os princípios, a verdade eterna; o Espírito oferece o poder, a
sensibilidade, a renovação interior.
“Santifica-os
na verdade; a tua palavra é a verdade” (João
17:17). A Palavra de Deus é como o código genético espiritual da nova criação.
b) O
Espírito – vivificador e transformador
“O Espírito
é o que vivifica; a carne para nada aproveita; as palavras que vos tenho dito
são espírito e vida” (João 6:63). O Espírito aplica e torna eficaz
a Palavra. Sem o Espírito, a Bíblia pode ser apenas um texto histórico; com
o Espírito, ela se torna viva e regeneradora.
c) A nova
criação
“Criou Deus
o homem à sua imagem...” (Gênesis 1:27). “...
somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras...” (Efésios
2:10).
Ellen White
entende que a salvação é um novo ato criativo. É Deus repetindo Gênesis
1 no coração humano.
Implicações
práticas – como cooperar com essa recriação?
a) Expor-se
continuamente à Palavra com espírito de reverência
“A Palavra
de Deus deve ser o fundamento de toda educação e reforma.”(Educação, p. 126).
b) Clamar
pelo Espírito Santo diariamente
“É a presença do Espírito que torna eficaz a
Palavra.”(Parábolas de Jesus, p. 113).
c) Participar
do processo de recriação com entrega e obediência
“Na obra de
restaurar a imagem de Deus na alma, deve haver cooperação entre o divino e o
humano.” (Educação, p. 15).
A restauração da alma não é mero esforço
humano nem só aceitação passiva. É uma interação dinâmica entre a Palavra que ordena e
o Espírito que transforma.
5 A
GENÉTICA ESPIRITUAL: REESCREVENDO O CÓDIGO MORAL DA ALMA
A “genética
espiritual” representa simbolicamente o conjunto de inclinações e disposições
internas do ser humano. O pecado corrompeu esse código (Salmo 51.5; Efésios
2.3). Assim como a genética física determina traços corporais, a
"genética espiritual" define nossa forma de reagir moral e espiritualmente à
vida. E, segundo a Bíblia, essa estrutura foi corrompida pelo
pecado (Efésios 2:1-3), mas pode ser recriada.
a) Herdamos uma natureza caída. “Eis que em
iniquidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe”(Salmo 51:5). David reconhece que nasceu com uma disposição interior
inclinada ao pecado — o que podemos chamar de "carga espiritual
hereditária".
b) Somos por natureza filhos da ira. “... entre os quais também todos nós andávamos outrora, segundo as
inclinações da nossa carne [...] e éramos por natureza filhos da ira”(Efésios 2:3). Paulo descreve que o ser humano tem um programa
interno corrompido, operando em rebelião contra Deus.
Como essa genética espiritual pode ser alterada?
A restauração envolve três fases:
a)
Regeneração – Novo
nascimento operado pelo Espírito. “Se alguém não nascer da água
e do Espírito, não pode entrar no Reino de Deus”(João 3:5). O novo nascimento não é uma reforma
externa, mas um ato de criação espiritual que reconfigura a natureza
humana. É como se Deus reescrevesse o DNA moral da alma. “Deus nos
gerou pela palavra da verdade, para que fôssemos como primícias das suas
criaturas”(Tiago 1:18). A Palavra age como o código espiritual divino,
e o Espírito Santo como o agente de replicação.
b) Adoção
espiritual – Nova identidade e herança
divina. “...recebeste o espírito de adoção, pelo qual
clamamos: Aba, Pai” (Romanos 8:15). O Espírito Santo nos incorpora a uma nova família, e com isso, recebemos
a “herança genética” do Pai celestial — isto é, os traços do caráter de
Cristo começam a ser reproduzidos em nós (cf. Gálatas 4:19). “... nos
predestinou para sermos conformes à imagem de seu Filho...”(Romanos 8:29).
c)
Santificação progressiva – Transformação contínua do
caráter. “Mas todos nós [...] somos transformados de
glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor” (2
Coríntios 3:18). A santificação é um processo de reprogramação da
alma, onde o velho padrão vai sendo substituído pelo novo — o
caráter de Cristo vai sendo “inserido” como novo código.
WHITE
(1999, v. 1, p. 28) reforça: “A mente, o caráter e a personalidade devem ser
transformados pela atuação do Espírito Santo, até que reflitam a imagem de
Cristo.”
Implicações
práticas: como permitir essa reescrita espiritual
- Submissão diária à Palavra – ela contém o código moral divino (Salmo 119:11).
- Busca constante pelo Espírito Santo – é Ele quem aplica e grava essa Palavra no coração (Ezequiel
36:26-27).
- Decisões práticas de santificação – abandonar hábitos, ambientes, e pensamentos que reforcem o velho
código (Romanos 6:12-14).
- Foco em Cristo como modelo genético
espiritual perfeito – Ele
é o “primogênito entre muitos irmãos” (Romanos 8:29), ou seja, o padrão a
ser replicado.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A
restauração da alma, segundo a teologia bíblica, é mais do que um
aperfeiçoamento moral; é uma nova criação. A Palavra de Deus atua como código
moral divino, e o Espírito Santo como agente regenerador. O ser humano passa a
refletir a imagem de Cristo (Romanos 8.29).
WHITE
(2002, p. 458) declara: “O mesmo poder que operou na criação, opera na
regeneração. Aquele que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, é quem
resplandeceu em nossos corações.”
O
equilíbrio espiritual perdido com a queda pode ser restaurado pela cooperação
entre Deus e o homem. É um retorno à origem — uma nova gênese operada pela
graça.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA. Almeida Revista e Atualizada. Barueri:
Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
WHITE, Ellen G. Caminho a Cristo.
Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2004.
WHITE, Ellen G. Educação. Tatuí: Casa
Publicadora Brasileira, 2006.
WHITE, Ellen G. Maranata, o Senhor vem.
Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1990.
WHITE, Ellen G. Mente, Caráter e
Personalidade. v. 1. Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 1999.
WHITE, Ellen G. A Ciência do Bom Viver.
Tatuí: Casa Publicadora Brasileira, 2002.