No mundo cristão, no ambiente das
igrejas, o conceito de adoração está reduzido a demonstrações de êxtase e misticismo.
Pessoas fazem expressões de estado de consciência sobrenatural consentindo num
frenesi, geralmente escoltado de música agitada a qual leva a muito movimento e
pouca meditação. Sem o referido estado de coisas, os crentes pensam não poderem
se aproximar de Deus. Tais manifestações são fanaticamente falsas. Em nenhum
momento nos relatos sagrados há menção de êxtase na adoração dos primeiros
cristãos, quer da parte dos discípulos ou dos membros da primeira igreja.
Então, qual o conceito bíblico de adoração?
O profeta
Isaías é a referência para entendermos melhor o assunto. Um dos capítulos mais
voltado para adoração é o 58, onde o profeta define inequivocamente o que Jeová
espera do seu povo quando está reunido no templo nos sábados: “CLAMA em alta
voz, não te detenhas, levanta a tua voz como a trombeta e anuncia ao meu povo a
sua transgressão...” Qual é a transgressão do povo? O profeta responde: “que
soltes as ligaduras da impiedade, que desfaças as ataduras do jugo e que deixes
livres os oprimidos, e despedaces todo o jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão
com o faminto, e recolhas em casa os pobres abandonados; e, quando vires o nu,
o cubras, e não te escondas da tua carne? Então romperá a tua luz como a alva,
e a tua cura apressadamente brotará, e a tua justiça irá adiante de ti, e a
glória do SENHOR será a tua retaguarda. Então clamarás, e o SENHOR te responderá;
gritarás, e ele dirá: Eis-me aqui. Se tirares do meio de ti o jugo, o estender
do dedo, e o falar iniquamente; E se abrires a tua alma ao faminto, e fartares
a alma aflita; então a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como
o meio-dia. E o SENHOR te guiará continuamente, e fartará a tua alma em lugares
áridos, e fortificará os teus ossos; e serás como um jardim regado, e como um
manancial, cujas águas nunca faltam”. Ora, se adoração tem a ver com ser ouvido
por Deus, e se o que Deus comanda para ser encontrado é o que o profeta declarou,
então, por que as igrejas insistem em êxtases?
As declarações
de Isaías apelam para uma religião onde os crentes devem cooperar uns com os
outros, ou seja, crentes unidos em vontade e ação. Porém, a busca pelo êxtase
não atende ao comando da cooperação, uma vez que êxtases são experiencias individuais.
Então, como poderão os crentes criar estruturas de cooperação quando estão
envolvidos num mundo de vontades individuais?
Há três
maneiras nas quais empenhamos pessoas a fazerem o que queremos que façam: 1)
Poderemos pagá-las para fazerem, neste caso estamos lançando mão da economia de
mercado. 2) Força-las para que façam, todavia usaremos o mundo do poder ou do
Estado; em nenhum dos casos, os indivíduos abdicam dos seus interesses e
desejos privados. 3) A terceira maneira é trazer os indivíduos a unirem-se em
uma aliança, em uma responsabilidade coletiva e fidelidade mútua. Este não é um
mundo do eu em busca de seus interesses. É um mundo de um coletivo “nós”, no
qual unimos nossa identidade em algo maior que nós, o qual define quem somos e
que nos obriga a um conjunto de empreendimentos pelos quais escolhemos livremente
estar vinculados. Este é o mundo do pacto, e sobre ele a Bíblia fala.
Voltando ao profeta
Isaías, melhor seria compreender o conceito de adoração que há nas suas
recomendações, tais como: Que soltes as ligaduras. Entre os judeus, as práticas
religiosas tinham se tornado um manto para ocultar a opressão dos fracos, o
roubo às viúvas e aos órfãos, e todas as formas de suborno, engano e injustiça
(Is 1:17, 23; Os 4:2; Am 2:6; 3:10; 4:1 ; 5:11; 8:4-6; Mq 6:11, 12). O
verdadeiro propósito da religião é libertar o ser humano dos fardos do pecado,
eliminar a intolerância e a opressão e promover justiça, liberdade e paz. Deus
queria que Seus filhos fossem livres, mas os líderes de Israel os estavam
convertendo em escravos e mendigos, à semelhança dos líderes religiosos atuais.
A verdadeira religião é prática. Sem dúvida, inclui os ritos e as cerimônias da
igreja, mas é na atitude perante o próximo que se manifesta a presença ou a
ausência da verdadeira religião. Não é tanto uma questão de se abster do
alimento quanto o é de compartilhar o alimento com o faminto. A bondade na
prática é o único tipo de religião reconhecida no juízo divino (Mt 25:34-46). É
interessante perceber que muitas das declarações mais conhecidas dos profetas
do Antigo Testamento sobre justiça e injustiça, na realidade, foram feitas no
contexto das instruções sobre adoração. Como veremos, a verdadeira adoração não
é algo que acontece apenas durante um ritual religioso, mas é também
compartilhar do interesse de Deus pelo bem-estar dos outros, buscando elevar os
oprimidos e negligenciados a uma condição mais digna e justa.
Em relação ao comportamento
religioso do antigo Israel, o profeta Isaías declarou que não estavam andando
na verdade. A bondade, a misericórdia e o amor não eram praticados. Enquanto
apresentavam uma aparência de tristeza por seus pecados, estavam acariciando o
orgulho e a avareza. No próprio momento em que estavam mostrando uma humilhação
exterior, exigiam trabalhos forçados de seus subalternos ou empregados. O mesmo
se dá hodiernamente com os crentes.
Há uma
preocupação que aflige a mente dos crentes, aqueles que são interessados em
satisfazer os padrões comandados por Deus. Pelo que vimos acima, o padrão moral
na adoração é muito alto, por esse motivo, alguns se desesperam porque a alma
humana parece menor e sem possibilidades. A avareza é o nosso conforto, a ajuda
ao próximo é o nosso desconforto. Para o crente fiel, essa luta é quase inglória.
Por que Deus nos obriga a um padrão para o qual não nos parece fácil alcançar?
A resposta a
esse quase paradoxo é que fomos criados à semelhança de Deus. Nesta condição,
Ele não nos está comandando a algo improvável. Em Levítico 19:2, Deus diz a
Moisés: “Fala a toda a congregação dos filhos de Israel, e dize-lhes: Santos
sereis, porque eu, o SENHOR vosso Deus, sou santo”. Na Bíblia, o conceito
de santidade é o mesmo do de justiça, ou seja, o santo é o justo, ora, se Deus
é justo conosco, manda-nos o sol e a chuva, mantém a natureza trabalhando para
manutenção da própria vida, então, as criaturas feitas à Sua semelhança também
deverão ser justas, e consequentemente santas.
De outro lado, Deus
é um ente relacional, logo, necessita estar em contato com as criaturas. Porém,
amigos estão relacionados por graus de semelhanças, significando que pessoas muito
diferentes não consentem o estado de comunhão, exatamente por não partilharem
os mesmos pressupostos de base. Tal fato leva a interpretações divergentes
sobre o mundo, dificultando o companheirismo. Se os homens pensam
egoisticamente, mas Deus é um ente de justiça, o relacionamento entre ambos
está prejudicado. Assim, a solicitação de Deus quanto a santidade para a
humanidade é a condição sine qua para haver relacionamento. Logo,
adoração não pode lançar mão do êxtase por tratar-se de uma subjetividade.
O profeta
Isaías no capítulo 5, verso 16, diz que “...o SENHOR dos Exércitos será
exaltado em juízo; e Deus, o Santo, será santificado em justiça”. Isto é,
honrado e vindicado em Seus atos de justiça. Os atos do Senhor Lhe trazem honra
e glória diante de todo o universo. Se Deus for submetido a um inquérito sobre
os seus atos na condição de rei e administrador do universo, não serão
encontrados nenhum ato de injustiça. O povo escolhido deve ter o caráter de
Deus. O Israel simbólico, os crentes atuais, perderam de vista o fato de que
Deus é santo, portanto, falham em compreender a importância e o significado da
justiça. Logo, não conseguem com seus cultos e festas, preenchidos pelo egoísmo,
adorar ao Deus santo, mimetizando santidade com êxtase.
A justiça de
Deus é, em primeiro lugar, simplesmente parte de quem Ele é – um componente
essencial de Seu caráter. “Deus não procede maliciosamente; nem o Todo-Poderoso
perverte o juízo” (Jó 34:12). Deus é justo e Se interessa pela justiça – essa é
uma razão para adorá-Lo e louvá-Lo.
Em segundo
lugar, a justiça de Deus é vista em Seus atos justos e retos em favor de Seu
povo e de todos os pobres e oprimidos. Sua justiça jamais é uma mera descrição
de Seu caráter. Ao contrário, a Bíblia retrata um Deus que “ouviu o lamento dos
aflitos” (Jó 34:28); que age e anseia corrigir os erros tão evidentes no mundo.
Em última análise, isso será completamente realizado no juízo final de Deus e
em Sua recriação do mundo. Logo, os que o adoram devem trazer diante dele seus
atos de justiça, porque quando os profetas explicaram a relação entre adoração
e justiça, recomendaram insistentemente outro passo: que o interesse em socorrer
os pobres, os oprimidos e os necessitados fosse parte importante da adoração.
Isaías 58 torna essa relação evidente.
O mais elevado
valor moral não pode ser conseguido sem a perfeição da sociedade. O bem-estar
da alma só pode ser obtido depois que o corpo estiver seguro. É absurdo supor
que as pessoas possam alcançar alturas espirituais se lhes faltam as
necessidades materiais mais básicas. Uma pessoa que sofre fome, sede, calor ou
frio, não pode compreender uma ideia, ainda que comunicada por outros, muito
menos pode chegar a ela por seu próprio raciocínio. Assim, uma sociedade sadia
é a condição prévia da espiritualidade. Isso requer, em primeiro lugar, remover
toda a violência do nosso meio, e em segundo, ensinando a todos excelência
moral a qual deve produzir um estado social excelente. Uma sociedade baseada na
responsabilidade coletiva, ou seja, nós, o povo, sob a soberania de Deus. A boa
sociedade depende de indivíduos com elevado senso espiritual. Tal sociedade
está baseada na justiça ou equidade, a qual está baseada na memória coletiva e
chamado ativo, o qual se dá nas celebrações no templo.