sábado, 20 de maio de 2017

Uma declaração simples de princípios capitais


Os dez mandamentos têm um lugar especial, não só no judaísmo, mas também dentro das configurações mais amplas dos valores chamados a ética judaico-cristã. Em muitas instituições de justiça ao redor do mundo são encontrados como adorno e referência, permanecendo como a expressão da lei superior a qual está associada a todas as leis humanas.

Dentro do judaísmo, nos tempos do segundo templo, eles eram recitados nas preces diárias como parte do SHEMA (Deut. 6:4-9 a profissão de fé central do judaísmo), o qual tinha quatro parágrafos ao invés de três. No entanto, foram suprimidos do SHEMA, mas mantiveram sua integridade sendo preservados no SIDUR (livro litúrgico) na condição de uma meditação privada a ser dita após a celebração do serviço formal. Na maioria das congregações, pessoas permanecem quando os dez mandamentos são lidos como parte da leitura da Torá. A singularidade dos dez mandamentos, todavia, não é prontamente alcançada.

Como princípios éticos, não os entendemos como novos. Na maioria das sociedades existem leis contra assassinatos, pilhagens, e falsos testemunhos. Mas há originalidade pelo fato de que são apodíticos (necessariamente verdadeiros por evidência e por demonstração). A Torá os chama de aseret hadevarim, que foi traduzido como decálogo.
O que os torna característicos é que são simples e fácies de memorizar. A razão para isto é que a lei não é planejada somente para juízes.

A aliança no Sinai, em consonância com o igualitarismo profundo no coração da Torá, foi feita não como outras alianças promovidas entre reis no mundo antigo. O pacto do Sinai foi feito por Deus com todo o povo. Daí a necessidade de uma declaração simples de princípios capitais que todos podem lembrar e recitar. Mais do que isso, eles estabelecem para todos os tempos os parâmetros da existência judaica que serviu como espelho para o mundo. Para compreender como, vale a pena refletir sobre a sua estrutura básica.

Um tema fundamental é como estão divididos.  A maioria das representações dos dez mandamentos analisa-os em dois blocos, por causa das duas tábuas de pedra (Deut. 04:13), nas quais foram gravados. Rudemente falando, os cinco primeiros são sobre a relação entre humanos e Deus, os outros cinco sobre a relação entre os seres humanos. Há, no entanto, uma outra maneira de pensar sobre as estruturas numéricas da Torá. Vejamos alguns arquétipos.

Os sete dias da criação, por exemplo, são estruturados como dois conjuntos de três dias, seguidos por um sétimo dia todo-abrangente. Durante os três primeiros dias Deus separou domínios: luz e trevas; águas superiores e inferiores, mar e terra seca. Durante os outros três seguintes dias Ele preencheu cada domínio com os objetos apropriados e formas de vida: sol e lua; pássaros e peixes; animais e homem. O sétimo dia foi designado para além dos outros como santo.

Da mesma forma, as dez pragas consistem de três séries de três, seguidas por uma décima toda abrangente e autossuficiente.  As duas primeiras foram avisadas, enquanto a terceira atingiu sem aviso. Na primeira de cada série, Faraó foi avisado de manhã (Êxodo 7:16; 9:13); na segunda série de três Moisés foi comandado para entrar perante Faraó (Êxodo 8:1; 9:1; 10:1) no palácio e assim por diante. A décima praga, ao contrário das outras, foi anunciada desde o início (Êxodo 4:23). Era mais que uma praga, um castigo.

As sete cores do arco ires (vermelho, laranja, amarelo; verde, azul anil; violeta); as sete camadas atômicas, entre outras, são exemplos da estrutura numérica bíblica. No caso do arco ires, são dois grupos de cores e uma abrangente.

Similarmente, parece que os mandamentos estão estruturados em três grupos de três, com um décimo que é colocado à parte do restante. Assim compreendido, poderemos ver como formam uma estrutura básica, a regra de profundidade moral de Israel como sociedade vinculada por uma aliança com Deus, um reino de sacerdotes e uma nação santa (Êxodo 19:6).

Os três primeiros – não terás outros deuses além de mim, não farás imagens de escultura, não tomar o nome de Deus em vão – definem o povo que os observa como uma nação sob Deus. Deus é o senhor soberano. Portanto, todas as outras regras terrenas estão sujeitas aos imperativos globais, vinculando os observadores dos mandamentos a Deus. A soberania divina transcende a todas as outras lealdades (nenhum outro deus). Deus é uma força viva, não um poder abstrato (nenhuma imagem). E soberania pressupõe reverência (não use meu nome em vão).

Os primeiros três mandamentos, através dos quais as pessoas declaram sua lealdade e obediência a Deus acima de tudo, estabelecem o único princípio de uma sociedade livre, ou seja, os limites morais do poder. Sem isso, mesmo na democracia, há o perigo da tirania, contra a qual a melhor defesa e a soberania de Deus.

O segundo grupo de três mandamentos – sábado, honrar os pais, proibição do assassinato – são todos sobre o princípio da preexistência da vida. Eles estabelecem os limites para a ideia de autonomia, ou seja, que somos livres para fazer o que gostamos desde que não prejudiquemos os outros. Sábado é o dia dedicado a ver Deus como criador e ao universo como sua criação. Daí um dia em sete, todas as hierarquias humanas estão suspensas e todos – mestres, escravos, empregadores, empregados, mesmo os animais domésticos – são livres.

O honrar os pais reconhece a preexistência humana (havia vida antes de nós nascermos). Diz-nos que nem tudo é o resultado de nossa escolha – principalmente, o fato da nossa existência. Importam as escolhas das outras pessoas, não apenas a nossa própria. Quando chegamos, o mundo já estava organizado e pessoas que nos antecederam atuaram nele. Nossa compreensão da pré-existência nos impõe humildade, uma vez que encontramos uma construção da qual não participamos, mas usufruímos e poderemos atuar nela. Não matarás reafirma o princípio central do pacto universal com Noé (Gen. 9:1-7), que o assassinato não é apenas um crime contra o homem, mas um pecado contra Deus, de quem somos imagem. Então os mandamentos de quatro a seis formam o princípio básico da jurisprudência da vida. Fazem-nos lembrar de onde viemos, e nos impõe estar atentos no como viver.

O terceiro conjunto de três mandamentos – contra o adultério, roubo, falso testemunho – estabelece as instituições básicas sobre as quais a sociedade depende. Casamento é sagrado porque é a mais forte união humana a qual se aproxima da aliança entre Deus e os homens. Não somente o casamento é uma instituição humana por excelência, a qual se estabelece sobre a lealdade e fidelidade, mas também é a matriz de uma sociedade livre, considerando que a constituição familiar é de livre escolha, logo, uma sociedade se forma a partir da livre escolha porque as famílias são de livre escolha.

A proibição contra a pilhagem estabelece a integridade da propriedade. São direitos inalienáveis a vida, a liberdade, a posse e a busca pela felicidade. Tiranos abusam da propriedade, e o ataque à liberdade atenta contra a dignidade humana. A escravidão é o que nos priva da posse da riqueza que criamos.

A interdição do falso testemunho é a pré-condição da justiça. Uma sociedade justa necessita mais do que uma estrutura de leis, tribunais e agências de aplicação da justiça. Não há liberdade sem justiça, assim como não há justiça sem que aceitemos individualmente e coletivamente a responsabilidade por falar a verdade, somente a verdade, e nada mais que a verdade.

Finalmente vem a proibição autossuficiente contra a inveja. Isso parece estranho se pensarmos nos dez mandamentos como comandos, mas não se pensarmos neles como princípios básicos para uma sociedade livre. O desafio gigantesco a qualquer sociedade é conter o quase inevitável acontecimento da inveja, o anseio de obter o que compete a outro. Inveja está apoiada no íntimo da violência. Foi a inveja que levou Cain matar Abel, fez Abraão e Izaac temerem por suas vidas por causa das suas lindas esposas, levou os irmãos de José a odiá-lo e força-lo à escravidão. É a inveja que leva ao adultério, à corrupção, ao roubo, ao falso testemunho; foi a inveja em relação aos vizinhos que levou o antigo Israel a abandonar a Deus em favor de práticas pagãs do seu tempo.

Inveja é a falha em compreender o princípio da criação como exposto em Genesis 1. Cada coisa tem o seu lugar no diagrama das coisas. Cada um de nós tem seu próprio dever e suas próprias bênçãos; somos amados e queridos de Deus. Vivendo por essa verdade estabelecemos a ordem. Abandonando-a estabelecemos o caos. Nada é mais inútil e destrutivo do que deixar a felicidade de alguém diminuir, porque agenciamos a inveja. O antídoto para inveja é o regozijo com o que temos e não a preocupação com o que não temos.

A sociedade de consumo é construída na criação e intensificação da inveja, a qual leva as pessoas possuir mais e apreciar menos.

Os dez mandamentos continuam a ser os mais simples, os mais curtos guias para a criação e manutenção de uma boa sociedade. Muitas alternativas têm sido criadas e muitas têm terminado em lágrimas. O adágio sábio conservar-se verdadeiro: quando tudo o mais falhar, leia as instruções, ou seja, siga os dez mandamentos.


Texto adaptado do livro “Essays on Ethics” do Rabino Jonathan Sacks.